Catarina (nome fictício) doou óvulos por uma questão matemática. Ela e a esposa Alice (nome fictício) queriam engravidar e procuraram uma clínica de reprodução assistida que coubesse no orçamento. Uma alternativa que encontraram para os altos custos –que podem extrapolar os R$ 30 mil— foi doar alguns óvulos, prática que pode ajudar a baratear a FIV (fertilização in vitro) em algumas clínicas.
Ela é uma das cerca de 18.500 pessoas que doaram óvulos no Brasil nos últimos cinco anos, de acordo com dados da Red Latinoamericana de Reproducción Asistida (Redlara, Rede Latino-Americana de Reprodução Assistida). Os dados são reportados voluntariamente pelas clínicas do país, o que torna o alcance limitado. A organização estima que os dados da rede computem de 70% a 80% do total do Brasil.
Os dados da Redlara indicam que as doações de óvulos geraram pelo menos 5.000 bebês de 2019 a 2023. Os bebês gerados por meio da FIV foram ao menos 40 mil nesse período. As crianças nascidas por meio de óvulos doados representam 12,5% dos nascidos por fertilização in vitro.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) faz um panorama por meio do SisEmbrio (Sistema Nacional de Produção de Embriões). O sistema não informa quantas pessoas doaram óvulos e quantas crianças nasceram por meio da FIV no país. A reportagem entrou em contato com a Anvisa por email duas vezes na última semana, sem resposta. O sistema monitora os embriões congelados no país. Foram 544.968 de 2020 a 2024.
O descarte de embriões foi motivo de disputa nos Estados Unidos no fim do ano passado. No Alabama, entendimentos jurídicos sobre o início da vida se dar no momento da concepção abriram brechas para que clínicas de reprodução assistida fossem acusadas de homicídio ao descartar embriões.
No Brasil, existe uma brecha jurídica. Não há legislação para a reprodução assistida, apenas diretrizes do CFM (Conselho Federal de Medicina). Segundo o órgão, quem decide sobre o descarte são os pais, em conjunto com médicos.
É por causa de detalhes dessa diretriz que Catarina pediu anonimato à reportagem. Ela diz que, na clínica, assinou uma série de documentos que a impediam de se identificar publicamente como doadora.
A medida está de acordo com a diretriz 2.320 de 2022 do CFM. O conselho obriga o sigilo sobre a identidade dos doadores e dos receptores. Além disso, veta “o caráter lucrativo ou comercial”. Ou seja, não é permitido vender óvulos no Brasil
Mas o anonimato pode não ser mais necessário. O projeto de reforma do Código Civil, que foi protocolado em janeiro e está parado no Senado, torna possível que uma pessoa nascida por meio de reprodução assistida descubra quem são os doadores de gametas por meio de autorização judicial. Ficaria também permitido aos doadores acessar o nome da criança. Seria a primeira legislação a reger a reprodução assistida no país.
Continuariam proibidas a venda de material genético, prática permitida em países como Estados Unidos e Portugal, e a chamada barriga de aluguel.
Apesar de ser proibido vender óvulos no Brasil, a doação para custeio do procedimento de FIV é comum. Márcia (nome fictício) também optou pela doação para ajudar a pagar o congelamento de seus óvulos. Ela fez o procedimento há um ano e meio, quando estava chegando aos 35 anos. Márcia e a então parceria pretendiam ter filhos. Agora, terminado o relacionamento, ela mantém os óvulos congelados e paga uma mensalidade.
A FIV está disponível pelo SUS (Sistema Único de Saúde), mas a espera pode chegar a dois anos e poucos centros fazem o procedimento no Brasil. O Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, foi o primeiro, em 2012.
Segundo Rui Ferriani, coordenador do Centro de Reprodução Humana do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto, a procura pela doação de óvulos é pequena na saúde pública. Maior é a busca pela FIV.
A rede pública acolhe qualquer indivíduo que não consiga engravidar sem reprodução assistida, caso de casais e pessoas inférteis ou homoafetivas. Ficam de fora potenciais gestantes com mais de 40 anos e com doenças como obesidade, hepatite B e hepatite C. Portadoras de HIV também não são atendidas pelo programa.
Ferriani diz que a procura pelo procedimento aumentou. “Primeiro, pelo conhecimento. A infertilidade é uma doença. Gera um desgaste emocional muito grande”, diz. “É uma doença e existe tratamento para isso.”
Para Catarina, essa visão pode ser prejudicial aos casais lésbicos férteis buscando a reprodução assistida. “O procedimento de uma clínica acaba pegando um perfil de pessoas que têm problemas”, afirma.
Ela sofreu com o protocolo padrão de injeção de hormônios para induzir a produção de folículos. “Ninguém me preparou psicologicamente para aquela carga hormonal”, diz. Houve, porém, preparo emocional para a doação de óvulos em si. O laudo psicológico é exigido pela diretriz do CFM.
Catarina diz ter se surpreendido quando soube que algumas pessoas poderiam ter questões com a doação. Ela e a esposa escolheram um doador anônimo num banco de esperma. “Assim como a gente usou material genético de outra pessoa para ter um filho, não vejo problema usarem o meu para ter uma família.”