Página Inicial Saúde O que um casaco sem a cordinha do capuz pode dizer de um alcoólatra – 16/06/2025 – Vida de Alcoólatra

O que um casaco sem a cordinha do capuz pode dizer de um alcoólatra – 16/06/2025 – Vida de Alcoólatra

Publicado pela Redação

Não fico lembrando nem remoendo o período em que estive internada. Passou, estou bem. Só que dia desses minha mãe encontrou um moletom de que gosto muito e que estava na casa dela, no fundo de um armário. Veio a calhar, afinal o frio pegou de vez e ele é bem quentinho, com capuz. Uma delícia.

Quando vesti o casaco, notei a falta da cordinha do capuz e aí sim me veio à tona a lembrança da última internação. Quando somos internados, todos ali são suicidas em potencial, então tudo aquilo que pode ajudar na tarefa de automutilação nos é retirado. Nessa última internação, perdi essa cordinha. Nas outras, perdi cadarços de tênis. Que foram substituídos por um esparadrapo. Era muito deprimente andar com o tênis meio capenga. Mas assim são as regras.

Eu inclusive tenho um tênis da época da minha primeira internação, em 2013. Quando saí da clínica, fui comprar novos cadarços e ele tomou outra vida. Mas minha primeira vontade era me desfazer de tudo. Algumas coisas eu tirei da minha vida. Nunca mais usei a marca de xampu que usava naquele período, joguei fora o chinelo que usava para tomar banho. O cheiro, as comidas, as pessoas, eu queria deixar para trás tudo e todos, nunca mais ver, sentir, ver…

Enquanto escrevo a coluna com o agasalho, choro muito. Foram 25 dias ausentes dessa vida naquele período. Eu não estava consciente e não lembro de nada. Mas do agasalho, não tem como, eu havia comprado um dia antes do episódio. Essa internação foi um processo doloroso porque todas as anteriores haviam sido voluntárias, ou seja, eu havia concordado em ir porque sabia que era a única solução para brecar meu alcoolismo. Só que essa última, eu fui de ambulância –primeiro me levaram para um hospital, onde concluíram que eu não tinha condições de viver em liberdade.

Só que eu não tinha bebido.

O pior, acredito, é tudo isso ter acontecido em outro país. Eu tinha bebido ou não, se perguntavam aqueles que estavam no Brasil. Nunca tinha acontecido algo parecido desde que eu estava sóbria. Fui internada. Não queria comer, não queria falar com ninguém. A confusão era grande. Nenhum médico falava a minha língua. Lembro por alto de achar que estava participando de algum programa de televisão. E fiquei encolhida no meu quarto. Chorando e com o moletom.

Minha família sempre me salvou dos meus problemas, e dessa vez não foi diferente. Meus irmãos foram ao meu encontro e minha mãe também. Quando eles me visitavam, era um choque grande porque eu me via confrontando meus dois mundos. Por que eu estava ali? Ninguém conseguia me ajudar. Foram muitas as vezes em que não recebi meus parentes, ou porque estava muito agitada e os médicos proibiram, ou porque queria ficar sozinha, olhando pela janela do quarto.

Lembro de tudo isso hoje porque faz exatamente um ano que consegui sair da internação. Depois de muitos esforços e ajudas dos colegas que estavam trancafiados comigo, da minha família. E sentindo falta do amor absoluto do meu cachorro. Lá ninguém entendia quando eu ficava chamando por ele, aos gritos.

Mas passou. Estou aqui, com o agasalho sem cadarço, com certa melancolia mas com toda força do mundo para seguir em frente. Daqui a pouco vou comprar o tal cordão e ele vai virar um símbolo de guerra, sem exagero.


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