O que há em comum entre exames de próstata, diagnósticos psiquiátricos, testes genéticos e a hidroxicloroquina? Os assuntos abordados no recém-lançado livro “Na saúde e na doença”, de Olavo Amaral, estão permeados pelo mercado farmacêutico e pela guerra de narrativas. O autor é médico e professor na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde trabalha com reprodutibilidade científica e ciência médica.
No mundo da ciência, evidências são fundamentais e indispensáveis. Mas existem estudos que corroboram os argumentos mais distintos, e a escolha de quais evidenciar se relaciona aos princípios e valores de cada um.
“Tem muitos estudos científicos ruins. A disponibilidade é grande de coisas que podem ser tomadas como evidências. Isso faz com que o que é baseado em evidências seja muito baseado em quais evidências que você escolhe”, diz Amaral.
Para ele, essa bandeira pode ser usada após a leitura e revisão de todas as evidências disponíveis, o que leva tempo. “Se eu vou ser um cara baseado em evidências, talvez para um ou dois assuntos eu consiga ser. Para todos os outros, não.”
Nesse caso, até as pessoas taxadas de anticiência seguem uma ciência, diz o médico e pesquisador. Quando perguntado, ele deixa claro que não gosta do termo desinformação.
“Me incomoda o jeito que isso é colocado na mídia”, pontua. “A ideia de que a gente tem atores que estão disseminando desinformação e que isso está chegando em pessoas ingênuas, então a gente tem que tirar isso fora. Eu acho complicado.”
Isso não significa que ele não acredita que a desinformação exista, mas que existem coisas que ficam num limbo e que não é possível controlar.
“É muito fácil você raptar esse debate de desinformação para evoluir para censura de visões que são legítimas, mas que você quer censurar, seja porque elas não estão de acordo com as suas visões políticas, seja porque elas não estão de acordo com as suas visões científicas.”
É por isso que ele começou a acreditar que precisamos de experts, especialistas em um determinado assunto, que vão realmente conseguir olhar para a maior quantidade de evidências dentro de um único assunto. E essas pessoas precisam ser o mais isentas possível.
Amaral acredita que quando os saberes entram no debate público —como aconteceu na pandemia, por exemplo— acaba virando uma batalha de narrativas, e a base da evidência se perde.
“Para mim, o ideal é fomentar confiança nas instituições. Se você não tem confiança nas instituições, não tem saída. Ter instituições fortes, ter mensagens internas claras e ter sistema de controle entre as instituições é o que dá para fazer”, conclui.
Até mesmo para os médicos que têm contatos diretos com os pacientes. Amaral diz que, com o tempo, passou a crer que não é possível ter uma autonomia completa sobre seu próprio tratamento. Para isso, a população teria que aprender a ler todas as evidências e também ter saúde mental para tomar certas decisões. O que é muito difícil.
Seria importante, então, ter profissionais em quem se confia, ao mesmo tempo que esses precisam simplificar ao máximo a decisão do paciente. “Eu acho que a autoridade médica pesa bastante aqui no Brasil.”
Nesse sentido, aqui, também há muitas vezes a necessidade exacerbada de realizar exames, o que pode atrapalhar mais o sistema de saúde do que ajudar. “É uma coisa que faz com que você sinta que a pessoa está preocupada com você, mas não pedir exame nenhum às vezes é o mais certo.”
Ele acredita que bons experts têm que ser isentos, estarem longe do debate público e estabilidade de cargo. Dessa forma, eles podem se ater aos fatos sem a preocupação ideológica da política vigente no momento ou se curvando à influência do mercado.
Amaral fala que a indústria farmacêutica sempre exerceu influência na saúde e expandiu mercados. A forma mais recorrente é a medicalização, propondo diagnósticos para vender certos tratamentos. “Na psiquiatria isso é muito óbvio”, afirma.
“Isso aqui era a tristeza, agora é a depressão. Isso aqui era broxar, mas agora é disfunção erétil.” E a classe médica lucra com isso também, com aumento de consultas e exames.
Fora as farmacêuticas tradicionais, de uns anos para cá a indústria wellness —bem-estar— entrou em uma crescente, sem precisar mascarar o interesse de venda e vincular os produtos à doenças. Basta dizer que se sentirá melhor.
“Se você está vendendo uma coisa que não funciona, eu acho que está errado. O wellness pra você se sentir bem, super tranquilo. O wellness da medicina preventiva é bem mais complicado.”
Quando há uma promessa de que algo irá prevenir uma doença no futuro, o médico fala que deveriam existir mais evidências, e é algo que, por hora, não dá para saber se está ou não funcionando. “Eu acho que aí tem muito espaço para picaretagem.”