Tecnologias baseadas em inteligência artificial (IA) têm se mostrado aliadas eficazes para ajudar fumantes a largar o cigarro convencional e o eletrônico, com possibilidade de aumentar o acesso a programas de cessação do tabagismo.
Experiências e estudos de vários países apresentadas durante a conferência internacional de controle do tabaco, que acontece em Dublin (Irlanda), mostram que as taxas de sucesso com o uso dessas ferramentas chegam a 50%.
O acesso a programas de cessação de tabagismo é hoje um grande gargalo no mundo. Segundo relatório lançado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) no evento, apenas um terço dos países (33%) oferece esses serviços. Ao mesmo tempo, 60% dos tabagistas desejam parar de fumar.
Usando algoritmos de processamento de linguagem natural e aprendizado de máquina, essas tecnologias simulam conversas humanas, respondem dúvidas, oferecem incentivo e ajudam a desenvolver estratégias para lidar com o desejo de fumar.
Alguns modelos conseguem também analisar padrões de comportamento dos usuários, como períodos de maior ansiedade, recaídas ou gatilhos, e ajustar automaticamente as intervenções.
Eles também podem integrar dados de dispositivos como os smartwatches, monitorando estresse e frequência cardíaca, para enviar alertas ou mensagens de apoio em momentos críticos.
Durante a conferência, pesquisadores da China apresentaram resultados promissores de um sistema de monitoramento baseado em IA (m-Health) que fornece mensagens personalizadas de acordo com o estágio de abandono e as preferências e necessidades de cada usuário em tempo real.
Em um ensaio clínico randomizado envolvendo 272 fumantes, a taxa de abandono do tabagismo do grupo de intervenção foi bem maior que a taxa do grupo controle (17,6% contra 7,4%).
“Na China, mais de 50 milhões de fumantes querem parar de fumar, mas a maioria não tem acesso a medidas eficazes de cessação. Nosso estudo mostra o potencial significativo das intervenções personalizadas de m-Health”, disse Pinpin Zheng, professor e diretor do Departamento de Medicina Preventiva e Educação em Saúde na Escola de Saúde Pública da Universidade Fudan.
Segundo ele, a abordagem demonstrou oferecer um modelo escalável e baseado em evidências para expandir o apoio à cessação na China e a nível global.
O Reino Unido foi um dos países pioneiros na implementação de IA na cessação do tabagismo dentro do sistema público de saúde (NHS). Desde 2021, o aplicativo Quit Genius, que combina terapia cognitivo-comportamental digital com suporte de IA, tem sido oferecido a fumantes.
Estudos mostram que, após seis meses, cerca de 45% dos usuários permaneciam sem fumar, enquanto as taxas com métodos convencionais giram em torno de 20% a 30%.
Na Nova Zelândia, o Ministério da Saúde adotou o chatbot QuitBot, integrado às redes sociais e aplicativos de mensagens. Relatórios do governo indicam que os usuários da ferramenta tiveram uma taxa de cessação 1,7 vez maior do que aqueles que tentaram parar sem suporte digital.
Revisões recentes, como uma meta-análise publicada na revista Nicotine & Tobacco Research, indicam que as intervenções digitais baseadas em IA são eficazes e escaláveis, especialmente quando combinadas com terapias medicamentosas.
O estudo avaliou 12 ensaios clínicos randomizados e concluiu que o uso de IA aumenta em até 50% as chances de sucesso na cessação do tabagismo em comparação com tentativas não assistidas.
Outro levantamento, realizado pela OMS em 2024, aponta que países que integraram soluções digitais e IA aos seus programas de combate ao tabagismo, como Reino Unido, Austrália e Canadá, observaram reduções sustentadas nas taxas de fumantes, especialmente entre os jovens adultos e usuários de cigarros eletrônicos.
Apesar dos avanços, especialistas alertam que a tecnologia deve ser uma aliada, e não uma substituta, dos tratamentos já validados, com acompanhamento de profissionais (humanos) e uso de medicamentos.
Componentes psicológicos e comportamentais
A psicóloga Vera Lúcia Borges, do programa de cessação do tabagismo do Inca (Instituto Nacional do Câncer), afirma que o tabagismo é uma doença que tem componentes psicológicos e comportamentais muito fortes e que o tratamento precisa envolver apoio a essas questões aliado a medicações para controlar sintomas.
“A IA deve se somar a isso, não substituir. O tabaco, de todo o tipo, toma um espaço na vida da pessoa, tem toda uma associação com sentimentos, com momentos, com cheiros. A gente precisa ouvir o usuário e tentar entender que tipo de sentimento esse produto gera.”
Segundo ela, muitas pessoas relatam que o cigarro traz um efeito de relaxamento em momentos de estresse e ansiedade. “É o efeito químico da nicotina no cérebro, que também faz as pessoas ficarem dependentes. No tratamento, precisamos desconstruir isso.”
Borges afirma que os dados do Brasil mostram que as taxas médias de sucesso na cessação do tabagismo, ao final de quatro sessões, giram em torno de 46%, mas em grupos isolados podem passar de 70%. Não há estudos mostrando se essas taxas persistem a longo prazo.
Durante a conferência em Dublin, o programa brasileiro de cessação do tabagismo foi bastante elogiado pela sua capilaridade. O tratamento é oferecido na atenção primária à saúde e em ambulatórios especializados e dura um ano. Envolve avaliação individual, encontros com suporte psicossocial e uso de medicamentos, se necessário.
A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, por exemplo, oferece a terapia nas 239 clínicas da família. Segundo Renato Cony, subsecretário de promoção, atenção primária e vigilância em saúde do Rio, entre as medicações ofertadas estão adesivos de nicotina e do antidepressivo bupropiona.
“Parte da população já nos procura hoje para parar de usar o vape, não só o cigarro convencional. Anos atrás, as pessoas achavam que estavam fazendo um bom negócio ao trocar cigarro por vape. Mas acabam com uma carga tabágica muito maior. Não é uma redução de danos.”
A jornalista viajou a convite da Vital Strategies