Em 2022, mais de 870 mil pessoas no mundo receberam o diagnóstico de câncer de fígado. Se não houver mudanças estruturais, o número pode saltar para 1,52 milhão de novos casos anuais até 2050. A estimativa é de uma publicação conduzida por uma comissão da revista The Lancet, publicada nesta segunda (28).
A mortalidade gira em torno de 760 mil mortes por ano, tornando o câncer de fígado a terceira principal causa de óbito por câncer —atrás de pulmão e colorretal. E a taxa de sobrevida em cinco anos raramente ultrapassa 30%, e, em muitos países, não chega a 10%. O lampejo de esperança é que 60% dos casos seriam evitáveis por meio do controle de fatores de risco como hepatites virais, álcool e doença hepática esteatótica metabólica (DHEM, nova denominação para a doença hepática gordurosa não alcoólica), que já afeta cerca de um terço dos adultos no mundo. Se tudo ficar como está, será 1,37 milhão de mortes em 2050 na conta da doença.
Além das estatísticas, uma novidade do relatório, fruto de uma comissão internacional de mais de 50 especialistas, está no estabelecimento de metas globais: cortar em 2% a 5% ao ano, a depender da faixa etária, a incidência do câncer de fígado. Segundo os autores, é a primeira vez que um documento internacional propõe um compromisso mensurável para enfrentar a doença.
A comissão estima que, se houver êxito, até 17,3 milhões de novos casos e 15,1 milhões de mortes poderão ser evitados até 2050. O grupo projeta ainda que a fração de casos advindos de uma forma grave da DHEM, chamada EHDM (esteato-hepatite associada à disfunção metabólica), aumentará 35% até 2050, passando de 8% para 11% do total. Paralelamente, cresce a preocupação com o álcool: ele será responsável por 21% dos casos globais de câncer de fígado em 2050.
Para deter o avanço do câncer de fígado, a comissão recomenda medidas como integrar a vacinação contra hepatite B aos calendários de imunização, ponto que o Brasil já cumpre, apesar de a meta não ter sido atingida nos últimos anos. Também é preconizada a implantação do rastreamento universal para hepatite B e C (esta, ainda sem vacina disponível). Também deveria haver elevação de impostos e restrição de publicidade para bebidas alcoólicas, além de advertências do impacto à saúde nos rótulos.
“O problema tem vários níveis, mas as questões mais importantes são a conscientização da população e a desigualdade nos recursos, porque o conhecimento já existe. Sabemos sobre a vacinação, conhecemos os antivirais, os medicamentos contra o câncer —já temos muita coisa. O desafio está em como aplicar esse conhecimento a cada pessoa afetada, para prevenir a doença ou melhorar a sobrevida. Às vezes, mesmo quando o governo quer implementar a vacinação ou o rastreamento da hepatite B, a população local não está informada ou não se engaja, por equívocos ou desconhecimento. O problema, ironicamente, não está na ciência, mas em como colocá-la em prática”, diz à Folha Stephen Chan, um dos autores do documento e professor de oncologia clínica na Universidade Chinesa de Hong Kong.
Embora o carcinoma hepatocelular seja mais prevalente na Ásia, ele também está crescendo na Europa Ocidental, nas Américas e na América do Sul. As características locais, como epidemiologia e disponibilidade de recursos, influenciam de tal forma que a conduta não é globalmente padronizada .”Para chegar a um consenso, não podemos considerar apenas os fenômenos do nosso próprio contexto. É preciso buscar um entendimento global, e isso nem sempre é fácil. É preciso haver revisão da literatura e pesquisas adicionais e até que todos concordem com os dados e recomendações. É a parte mais difícil, mas também a mais valiosa”, diz Chang.
Um exemplo dessa divergência é no rastreamento, explica Pedro Uson, oncologista do Einstein Hospital Israelita, que não participou do estudo.”Você tem que fazer ultrassom, dosar alfa-fetoproteína [cujo aumento está associado a tumores] e conduzir estratégias de imagem do fígado nos pacientes que sabidamente têm cirrose. Mas a esteato-hepatite, a gordura no fígado, é epidêmica — muita gente tem. Como que a gente vai fazer screening de todo mundo? Qual é a melhor estratégia? Quando tem que começar a fazer? Na esteatose grau 1? Grau 2? A gente não tem dados científicos para isso. A questão é que precisamos de mais estudos.”
Para Chan, o Brasil é um caso à parte. “Por um lado, enfrenta problemas com infecções como a hepatite viral; por outro, ao que tudo indica, a esteatose hepática e as doenças hepáticas metabólicas também são comuns. O consumo de álcool, que é elevado na América do Sul, agrava ainda mais esse cenário. Por isso, o governo brasileiro precisaria fazer um esforço adicional para enfrentar essas três causas principais e conter o avanço da incidência e da mortalidade por carcinoma hepatocelular.”
A China responde por cerca de 42% dos casos globais; África e Sudeste Asiático enfrentam taxas elevadas de hepatite B e C, agravadas pela dificuldade de acesso à vacinação e ao tratamento. Na América Latina, Brasil incluído, soma-se o aumento de obesidade, diabetes, desigualdades de acesso e políticas públicas insuficientes. Segundo a Comissão, se as tendências atuais persistirem, a África será a região com maior aumento proporcional de casos e mortes até 2050, requerendo atenção especial.
Para os autores, diferentes modalidades terapêuticas devem estar disponíveis, como cirurgias, transplantes, terapias locorregionais e sistêmicas, em abordagens personalizadas, incluindo as imunoterapias, medicamentos modernos e eficazes contra o câncer.
No entanto, segundo os autores, há gargalos persistentes, como o subfinanciamento crônico da saúde pública, a resistência de setores econômicos influentes, como o de bebidas alcoólicas e a indústria alimentícia. Além disso, faltam programas contínuos de capacitação profissional, financiamento estável e vontade política para priorizar a saúde do fígado nas agendas nacionais.
“É realmente um pesadelo, porque é uma doença extremamente letal. E o artigo traz alguns parâmetros para tentarmos combater esse aumento. É preciso mudar hábitos de vida e reduzir o uso do álcool, e o consumo de gordura, carne vermelha, comida ultraprocessada, carboidratos e açúcares, que estão relacionados ao desenvolvimento da síndrome metabólica. O acúmulo de gordura, assim como as infecções não tratadas, inflama o fígado, que dá cirrose, e depois dá o câncer”, explica Uson.
Ao mesmo tempo em que é um dos mais letais, o câncer de fígado é uma dos mais suscetíveis a intervenções sociais e comportamentais. Pesquisas nacionais ajudam a entender o desafio brasileiro. Um estudo da USP publicado na revista Cancer Epidemiology, em 2018, estimou que 4,6% de todos os cânceres no país em 2025 são atribuíveis ao excesso de peso, especialmente em homens. Já uma análise do INCA (Instituto Nacional de Câncer), publicada na revista Alcohol (2016), aponta que o álcool foi responsável por 4,8% dos novos casos de câncer em 2012, com o fígado entre os mais afetados.