A Abin (Agência Brasileira de Inteligência) lança um livro em que relata ter sido alvo de questionamentos durante o governo Jair Bolsonaro (PL) por apontar cenários de alastramento da Covid-19 enquanto a cúpula do Executivo cobrava dados favoráveis à hidroxicloroquina e checagens de boatos considerados “sem lógica nenhuma”.
A agência afirma que mobilizou a equipe para acompanhar a pandemia, elaborou previsões certeiras sobre as mortes e faltas de insumos, mas viu o trabalho ser desvalorizado pelo governo.
Em relatos sob anonimato, servidores da agência dizem que termos como “lockdown” e “isolamento social” se “tornaram tabu” e não podiam aparecer nos documentos de inteligência. “A gente sofreu muita pressão para diminuir, digamos assim, algumas observações que poderiam ser lidas como críticas ao governo”, afirma um dos agentes.
O lançamento nesta sexta-feira (25) do livro “Memórias da Pandemia: a atuação da Agência Brasileira de Inteligência no Enfrentamento à Covid 19 (2020-2021)” faz parte de um “esforço sistemático” de transparência e diálogo com a sociedade, argumenta a Abin.
“A reflexão é oportuna e necessária para que os erros não se repitam e para que os acertos incentivem gerações futuras de servidores a se manterem pautados por excelência profissional e por preceitos éticos”, afirma ainda a agência.
Como a Folha mostrou, a Abin elaborou mais de 1.100 documentos que alertavam sobre avanço da Covid em todo o Brasil, risco de colapso dos serviços de saúde e funerário e apontavam a vacinação e o distanciamento social como medidas eficientes. O governo manteve os papéis em sigilo, enquanto apostava na entrega em massa do “kit Covid”, que continha fármacos como a cloroquina, sem eficácia comprovada para a Covid, mas com uso incentivado várias vezes por Bolsonaro.
No livro, o órgão relata como adaptou a estrutura da agência na pandemia, formando até dez grupos de trabalho e utilizando uma rede segura (VPN) para colocar os servidores em home office.
Os agentes da Abin também dizem que se sentiram satisfeitos ao perceber a utilidade do trabalho da agência na pandemia, especialmente nos primeiros meses, quando ainda havia forte diálogo com o Ministério da Saúde e com o alto escalão do governo.
Os relatos, porém, apontam frustração da equipe de inteligência após o governo passar a questionar os dados e cobrar novos tipos de abordagens.
O livro da agência não cita nomes de autoridades, como Bolsonaro ou Alexandre Ramagem, que foi o diretor-geral da Abin na pandemia e hoje exerce o mandato de deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro. Ainda assim, a obra aponta contrariedade e “dissonância” entre os agentes que acompanhavam a pandemia e a cúpula do órgão.
“Acredito que havia uma expectativa, por parte da Direção-Geral [da agência], de que as informações da Abin pudessem corroborar o discurso de que a crise [do oxigênio] em Manaus estava sendo exagerada pelo prefeito ou pela imprensa. Mas não podíamos mentir”, afirmou um oficial que atuava na capital do Amazonas, segundo trecho reproduzido na obra.
A Abin ainda sinaliza que a nomeação do general Eduardo Pazuello (PL-RJ) para o comando do Ministério da Saúde foi um marco da guinada negacionista da gestão Bolsonaro.
“Em junho de 2020, logo após a nomeação do terceiro ministro da Saúde a enfrentar a crise epidemiológica, o governo federal decidiu parar de divulgar oficialmente esses dados”, afirma a agência, que diz ter passado a somar os dados das secretarias estaduais para acompanhar o avanço da crise sanitária.
Questionado sobre as afirmações do livro da Abin, Pazuello disse que críticas ajudam na “avaliação e melhoria de processos e no fortalecimento da democracia”. “Dentro da estratégia de manter o país funcionando e de salvar o maior número de vidas possíveis, tomamos as decisões estratégicas que deveriam ser tomadas naquele momento”, disse o ex-ministro, hoje deputado federal.
A Folha procurou a equipe de Bolsonaro, mas não obteve resposta. Ramagem também foi questionado e não se manifestou.
Um funcionário que atuava na Itália afirmou que foi “instado” a produzir um documento que “pontuasse aspectos positivos da hidroxicloroquina” e que recebeu orientação para deixar de acompanhar a pandemia após entregar conclusões de que a droga era “absolutamente ineficaz” contra a Covid.
Outro oficial, que trabalhava na China, disse que em maio de 2020 recebeu “orientações de Brasília” para deixar de priorizar a Covid e que os dados sobre a pandemia “não seriam devidamente aproveitados”. “Foi a primeira vez, em 20 anos de carreira, que recebi esse tipo de orientação”, relatou.
Em outro trecho, um servidor da Abin afirmou que a agência passou a usar “recursos de linguagem” para driblar o termo a vetos como “lockdown”. “O governo já tinha comprado a tese da imunidade de rebanho. Isso naquela época ainda estava meio velado, não era falado claramente.”
A agência também teria passado a receber pedidos de menor importância, na visão da equipe, como a checagem de boatos. “Coisas muito absurdas, sem lógica nenhuma, que circulavam em grupos de WhatsApp. Não fazia sentido nenhum pedir para a Inteligência verificar a veracidade daquilo, porque era evidente que não tinha nenhum lastro na realidade”, afirma um oficial, no livro.
“A gente tinha que perder um tempo precioso, parar a produção de coisas sérias e mais importantes para rebater conteúdo de fake news”, acrescentou.
Outra oficial de inteligência narrou que a equipe da Abin percebeu que o esforço “não surtia tanto efeito”, mas que o acompanhamento da pandemia foi mantido. “Muito mais para se resguardar também como instituição, mostrar que a gente estava fazendo um trabalho sério.”