Assim como outras ciências, a psiquiatria caiu na boca do povo. A ampliação na noção de diagnóstico pelas redes sociais —inclusive por profissionais da saúde— foi o que motivou Juliana Belo Diniz a destrinchar o assunto no livro “O que os psiquiatras não te contam”, lançado pela editora Fósforo.
Psiquiatra e psicoterapeuta, que em fevereiro participou do podcast Ilustríssima Conversa, da Folha, se especializou em pesquisa clínica pela Universidade de Harvard e atua como pesquisadora no Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (IPq-HC-USP).
“Chega na cultura que o bom profissional é aquele que segue o protocolo à risca”, diz. “E isso é o empobrecimento da relação humana.” Para ela, a beleza da psiquiatria é a singularidade de cada história e do modo como a relação entre médico e paciente se dará.
Essa visão humanizada da profissão não é um consenso entre os diferentes médicos. Muitos defendem com unhas e dentes os avanços da neurociência, os protocolos e tecnologias duras.
No dia a dia, o profissional tem a responsabilidade de olhar para a pessoa que ele está tratando de fato como uma pessoa. Essa afirmação pode parecer óbvia, mas nem sempre é. Juliana, no entanto, não acredita que isso parta de uma má vontade dos colegas, mas que é um sintoma do sistema em que vivemos.
“Eu vejo que a postura desumana é muito mais característica de pessoas sobrecarregadas em sistemas perversos de condições de trabalho, de não te dar tempo de atendimento, não te dar a possibilidade de marcar um retorno breve”, diz.
O que ela defende é um equilíbrio entre a ciência e a humanidade, uma ciência que convive com outros saberes e interage com eles de igual para igual. “A ciência tem que ter certa autonomia para existir uma liberdade de pensamento, mas ela tem que pensar nos impactos que ela causa no mundo e na sociedade”, afirma.
Nessa visão, desenvolvimentos tecnológicos e medicamentosos não deixam de ser importantes, mas ocupam um lugar de coadjuvantes no cuidado em saúde mental. “Até porque o transtorno mental, ele é um sofrimento de cada época, e cada época tem sua forma de manifestar sofrimento”, explica.
Para ela, os sintomas emocionais correspondem à forma como o indivíduo se porta no mundo, e o sofrimento faz parte da condição humana. “Não que a gente não vá sofrer pelos limites, mas saber conviver com eles. É uma forma de conseguir tolerar a vida.”
É por isso que, em uma abordagem mais holística, entende-se que o paciente está totalmente implicado no próprio tratamento. E isso significa, muitas vezes, trabalhar o próprio sofrimento, em vez de negá-lo.
Se a confiança e a esperança de melhora são totalmente depositadas única e exclusivamente nos protocolos e medicamentos, o risco de frustração é grande. “Porque muito provavelmente os remédios não vão entregar aquilo que você espera.”
Juliana é uma pesquisadora atualizada que enxerga a necessidade dos avanços na área, mas expressa uma preocupação: a glamourização do uso da tecnologia na medicina.
Se no século passado a ciência encontrou uma forma de justificar a retirada de uma parte do cérebro humano como forma de tratamento, hoje não estamos tão atrás.
A ideia de posicionar eletrodos dentro do cérebro das pessoas para controlar regiões cerebrais específicas tem chamado a atenção como um avanço significativo em saúde mental. “Esse também é um caminho perigoso, porque a gente estaria abrindo a cabeça das pessoas. Por melhor que seja a tecnologia, eu acho que é uma péssima ideia”, afirma.
Outro exemplo dado é a crescente de aplicativos e softwares desenvolvidos especialmente para o uso na área da saúde, seja pelos profissionais —como forma de otimizar o atendimento— ou pelos próprios pacientes.
Há relatos de pessoas que confiam em chatbots convencionais seus maiores anseios, como se estivessem em um divã psicanalítico. Mas isso vai além do ChatGPT. Aplicativos e ferramentas criadas propositalmente para agirem como psicoterapeutas invadiram o mercado, diz a especialista.
A psiquiatra cita estudos que usam chatbots —substituindo a figura do psiquiatra ou psicólogo— para tratar pessoas com transtorno do estresse pós-traumático. “Eu acho esse estudo profundamente desonesto, porque ele trabalha com script, e a gente sabe que nas relações humanas as pessoas não vêm com script.”
Na vida real, usar inteligência artificial para lidar com o sofrimento pode gerar respostas danosas à saúde mental e enfraquecer —ainda mais— os laços humanos, em uma corrente contrária à que acredita a psiquiatra.