Página Inicial Negócios A 'taxa' que a Igreja Católica cobra com venda de imóveis e terras 'de santos' no Brasil

A 'taxa' que a Igreja Católica cobra com venda de imóveis e terras 'de santos' no Brasil

Publicado pela Redação


A prática era comum em todo o Brasil e, até hoje, santos são citados em documentos oficiais como os donos de terras em várias partes do país, incluindo em capitais como Rio de Janeiro, Salvador e Fortaleza. Montagem com imagem de uma igreja.
BBC
Em 1946, a Justiça na cidade de Franca (SP) foi convocada a decidir sobre um caso incomum. Uma família buscava recuperar terras que, em 1876, seus antepassados haviam doado para o santo católico ao qual eram devotos, São Sebastião.
No processo, a família argumentava que “o santo de devoção não havia tomado posse da terra doada”.
Já a paróquia local protestou, dizendo ser a representante de São Sebastião na região e, portanto, a dona legítima das terras. A Justiça deu razão à Igreja.
O caso foi encontrado por Dirceu Piccinato Junior, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas (SP), enquanto pesquisava sobre terras doadas a santos católicos no interior paulista – tema abordado em sua tese de doutorado.
A prática era comum em todo o Brasil e, até hoje, santos são citados em documentos oficiais como os donos de terras em várias partes do país, incluindo em capitais como Rio de Janeiro, Salvador e Fortaleza.
A lista de santos proprietários de terras inclui figuras como São Francisco, São José, São Pedro, São João Batista, São Bernardo, além das mais diversas aparições de Nossa Senhora – da Conceição, do Carmo, do Livramento, entre outras.
Em sua maioria doadas às entidades no período colonial, várias dessas terras hoje abrigam bairros populosos, mas seguem tendo a Igreja Católica – a representante legal dos santos – como sua proprietária oficial.
Poderia ser só uma curiosidade histórica, diz Piccinato, não estivessem essas terras sujeitas a um polêmico instrumento legal milenar que foi incorporado pelo Código Civil brasileiro: a enfiteuse.
Também conhecida como aforamento ou emprazamento, essa norma jurídica obriga quem mora em imóveis localizados nessas terras a pagar uma espécie de imposto à Igreja Católica se quiser vendê-los.
A cobrança, chamada de laudêmio, corresponde a 2,5% do valor do imóvel e garante à instituição religiosa uma fonte de renda perpétua.
Afinal, mesmo com a transferência do imóvel, a Igreja Católica continua sendo a proprietária do terreno e tem o direito de voltar a receber o laudêmio sempre que ele for negociado outra vez.
Boa parte das terras no quadrilátro central de Ribeirão Preto pertence formalmente a São Sebastião, segundo pesquisador.
Google via BBC
Conflitos urbanos
Segundo Piccinato, a manutenção do regime da enfiteuse em terrenos da Igreja Católica gera uma série de conflitos. Ele conta que, por exemplo, há municípios que não conseguem cobrar IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) de imóveis construídos nessas áreas.
Outra dificuldade dessas cidades, diz o pesquisador, é atrair investimentos de programas públicos federais, como o Minha Casa, Minha Vida. Isso porque, segundo ele, vários programas só liberam os recursos se as terras beneficiadas forem públicas, e as terras pertencentes à Igreja são consideradas privadas.
Piccinato diz ainda que há cidades em que moradores de áreas sob o regime da enfiteuse não conseguem os títulos de suas propriedades, além de terem mais dificuldades para vender os imóveis, já que o laudêmio encarece as transações.
Em nota à BBC News Brasil, a Federação Nacional dos Corretores de Imóveis (Fenaci) disse que “a cobrança do laudêmio, tanto por entes públicos quanto privados, precisa ser revista à luz do princípio da função social da propriedade e da necessidade de simplificar e desonerar as transações imobiliárias”.
“Embora legal, essa exigência muitas vezes onera o comprador de boa-fé, desestimula a formalização de negócios e impõe um custo adicional que, em determinadas regiões, chega a impactar significativamente a liquidez do imóvel”, afirmou a entidade.
Nas redes sociais e em fóruns na internet, há vários moradores que dizem ter se surpreendido ao descobrir que deviam o pagamento à Igreja Católica. No Facebook, uma residente de Salvador diz que só soube da cobrança quando foi ao cartório transferir para seu nome a casa que tinha comprado.
“Lembro de ter dado um ataque na época, mas, como queria regularizar tudo, acabei pagando”, escreveu a moradora, para quem o instrumento retrata “o Brasil do privilégio, onde poucos ganham muito e muitos ganham nada”.
O pagamento do laudêmio à Igreja Católica já foi criticado por outras entidades religiosas.
Em 2013, um texto no jornal Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), tratou a cobrança como “medieval e anticristã”, e questionou no título: “Para onde vai o dinheiro do laudêmio?”.
Questionada sobre as críticas, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), órgão máximo da Igreja Católica no país, disse que não se manifestaria.
A CNBB afirmou ainda que não tem dados sobre quanto a Igreja Católica arrecada com o laudêmio no Brasil nem sobre a extensão das terras que lhe pertencem no país, pois as informações estão fragmentadas entre as dioceses que administram suas propriedades.
Vendas de imóveis no município de Petrópolis (RJ) geram até hoje receitas para a família imperial brasileira.
Getty Images via BBC
Áreas valorizadas
Sabe-se, no entanto, que algumas das terras que geram pagamentos de laudêmio à Igreja ficam em áreas bastante valorizadas – é o caso, por exemplo, de terrenos no centro de Ribeirão Preto que pertencem a São Sebastião e que Piccinato analisou em seu doutorado.
Segundo o pesquisador, a arquidiocese de Ribeirão Preto, representante do santo na cidade, é dona de todo o quadrilátero central do município – uma área que engloba dezenas de quarteirões com casas, edifícios e comércios, incluindo grandes lojas de redes varejistas.
Sites de imobiliárias exibem dezenas de imóveis à venda na região com valores entre R$ 100 mil e R$ 1,8 milhão. Por conta do laudêmio, a arquidiocese tem o direito de receber 2,5% do valor de cada imóvel vendido na região.
A venda de um apartamento de R$ 1 milhão, por exemplo, rende à entidade R$ 25 mil. O pagamento, feito por intermédio de cartórios, é uma condição para que a escritura do imóvel seja transferida para o nome do novo proprietário.
Piccinato afirma que, durante sua pesquisa, advogados da arquidiocese lhe disseram que todo o dinheiro arrecadado com o laudêmio em Ribeirão Preto vai para o Vaticano. A BBC questionou a CNBB e a arquidiocese sobre o destino dos valores recebidos, mas os órgãos não responderam até a publicação deste texto.
Qual a origem do laudêmio?
Em artigo publicado em 2015 na Revista dos Tribunais, Vitor Frederico Kümpel, juiz de Direito em São Paulo, e Larissa Pavan Santos, advogada e pesquisadora da Faculdade de Direito da USP, afirmam que foi no Império Bizantino, sob o governo de Justiniano (483-565), que se criou a enfiteuse, regime jurídico associado ao laudêmio.
O objetivo, segundo os autores, era ampliar o controle sobre terrenos da Igreja Católica arrendados a terceiros, impedindo que os arrendatários lucrassem negociando essas áreas com outras pessoas.
Com a enfiteuse, o arrendatário dessas terras – ou enfiteuta – passou a ter a obrigação de comunicar à Igreja Católica qualquer transferência do terreno, dando à instituição o direito de readquiri-la igualando a oferta do comprador.
Mas, se a Igreja não quisesse retomar o domínio pleno da terra, teria o direito de receber uma compensação, o laudemium.
No Brasil colonial, o regime se expandiu e passou a vigorar também sobre terras de outras entidades públicas e privadas, incluindo a União e a família imperial. Mas, nos últimos anos, têm havido iniciativas para limitar o alcance da enfiteuse.
Em 2021, por exemplo, o governo federal lançou um programa permitindo que moradores adquiram o domínio pleno de imóveis em áreas da União e, com isso, deixem de pagar o laudêmio. O programa, porém, não se aplica às terras da Igreja Católica nem às da família imperial.
Ocupação do Brasil
Segundo o professor de Arquitetura da PUC-Campinas – e estudioso da enfiteuse – Dirceu Piccinato Junior, a Igreja Católica construiu boa parte de seu patrimônio fundiário no período de colonização do Brasil, quando a Coroa portuguesa distribuía terras – as sesmarias – para estimular a ocupação do território.
Para atrair mão de obra, muitos fazendeiros que recebiam essas terras doavam parte das áreas a seu santo de preferência. O objetivo era fazer com que a Igreja Católica construísse uma capela no local, uma condição para que os trabalhadores aceitassem morar na região.
Com o tempo, vários desses povoados cresceram e se tornaram cidades. Nesse processo, segundo Piccinato, houve casos em que governos conseguiram negociar com a Igreja Católica para se apropriar de parte das “terras de santo”.
Também houve muitos moradores de terrenos da igreja que conseguiram na Justiça o domínio pleno de suas casas, livrando-se do laudêmio. Mas, em vários outros casos, a Igreja Católica batalhou nos tribunais para manter seus terrenos e o direito de receber o laudêmio.
Em Ribeirão Preto, por exemplo, Piccinato diz que a arquidiocese contratou advogados para assegurar seus domínios e rebater na Justiça questionamentos sobre as cobranças, argumentando que se trata de um “direito adquirido”.
De fato, lembra o pesquisador, o Código Civil de 2002 reconhece a validade da enfiteuse, embora tenha proibido a extensão do regime a novas áreas.
Já em Portugal, segundo Piccinato, a enfiteuse foi abolida de vez após a Revolução dos Cravos (1974). Foi quando chegou ao fim o Estado Novo português, regime ditatorial que mantinha fortes vínculos com a Igreja Católica.
Lá, diz o pesquisador, todas as terras da entidade que não abrigavam templos nem atividades religiosas foram expropriadas. Piccinato afirma que, quando esteve em Portugal para estudar a enfiteuse, muitos se surpreendiam ao descobrir que o regime ainda existia no Brasil.
Piccinato atribui a continuidade do sistema no país à influência que o catolicismo manteve na política brasileira após a Proclamação da República (1889).
No novo regime, embora o Brasil tenha se tornado um Estado laico, o pesquisador afirma que “os poderosos eram católicos, e os próprios religiosos [da Igreja Católica] tiveram a permissão de se candidatar e ocupar cargos políticos”.
Isso, segundo ele, fez com que a enfiteuse fosse preservada no nosso ordenamento jurídico mesmo após sucessivas mudanças legislativas e tributárias.
“Nunca houve uma separação plena entre Igreja e Estado no Brasil”, afirma Piccinato.
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