Faz parte da vida de todo cientista ler jornais para se manter a par dos eventos, mas jornal de cientista é diferente. Um “jornal” em português é o panfleto diário que traz as novidades do dia anterior, entre outras coisas. A palavra vem do francês journal, que descreve os escritos referentes a um dia (jour), e journaliste é quem escreve sobre eventos diários.
O journal dos cientistas vem do outro sentido de “diário”: o caderno onde se registram acontecimentos literalmente dignos de nota. Todo cientista, neste sentido, é journaliste dos seus próprios achados, ao publicá-los em um “jornal científico”, chamados de periódicos em português. Todo cientista é também obrigatoriamente leitor de jornais científicos da sua própria especialidade, no mínimo para não ficar para trás e gastar tempo e recursos redescobrindo a roda.
Alguns de nós, como esta colunista, acompanha também os journals de outras áreas, às vezes por gosto, outras por necessidade. É de onde eu tiro boa parte do que relato aos leitores como novidades da neurociência. É uma tarefa cada vez mais difícil, dado o número limitado de horas do dia e o número de “jornais” científicos ainda crescente em passo com a produção científica da era iluminada (que pelo jeito está chegando ao fim nos EUA, que vinha sendo o maior produtor moderno de conhecimento científico, mas isso fica para outro dia).
Se por um lado custa cada vez mais tempo, por outro, acompanhar jornais científicos variados é também cada vez mais divertido —e informativo. Vejamos o que eu aprendi apenas na manhã de hoje.
A novidade na área da enxaqueca é a ideia de que o ataque coincide com o colapso de uma rede formada entre o hipotálamo e áreas do córtex cerebral que representam o estado integrado de corpo e cérebro. A proposta é que, entre uma enxaqueca e a próxima, essa rede vai ficando cada vez mais ativa, como que “eletrificada”, e cada vez mais sensível a gatilhos que levam a picos de tensão que levam ao colapso do sistema —e o colapso é o ataque. A ideia é muito bacana, mas puxando o fio da meada até o relato original, descobri que, por enquanto, ela se baseia em registros de um único período entre dois ataques. Agora é esperar que um próximo estudo siga pacientes ao longo de várias enxaquecas.
Em outro canto completamente diferente da neurociência, descobriram que saber quais conjuntos de genes cada neurônio expressa, o que custa um mundo de dinheiro, afinal não basta para identificar tipos de neurônios diferentes. Neurônios, imagine só, são como gente. Biologia não é destino, pois onde eles nascem e o que eles fazem em seu ambiente também contribuem para definir sua forma e identidade.
Mais outro canto: de um daqueles feitos da combinação de dinheiro, tecnologia e gente com motivação para passar anos em doutorado aprendendo a fazer coisas complexas vem a descoberta de que dopamina e serotonina têm ações opostas sobre o aprendizado. A razão é que, como eu vivo insistindo, essas moléculas por si só não “trazem felicidade”; o efeito delas depende dos circuitos no cérebro que elas modulam.
E nas páginas seguintes, meu colega György Buzsáki, húngaro radicado em Nova Iorque, publicou outro trabalho lindo mostrando que sequências de neurônios no hipocampo representam, sim, sequências de eventos sensoriais —mas isso é apenas consequência do que realmente importa para o hipocampo de um camundongo, que é a sequência de ações que ele planejou fazer. Quem diria: até camundongos têm planos.
Tudo isso em apenas duas horas de uma manhã. Você não precisava saber disso —mas o mundo é tão mais rico com ciência.
Referências:
Stankewitz A, Keidel L, Rehm M, Irving S, Vaczmarz S, Preibisch C, Witkovsky V, Zimmer C, Schulz E, Toelle TR (2021) Migraine attacks as a result of hypothalamic loss of control. NeuroImage: Clinical 32, 102784.
Shainer I, Kappel JM, Laurell E, Donovan JC, Schneider MW, Kuehn E, Arnold-Ammer I, Stemmer M, Larsch J, Baier H (2025) Transcriptomic neuron types vary topographically in function and morphology. Nature 638, 1023-1033.
Cardozo Pinto DF, Pomrenze MV, Guo MY, Touponse GC, Chen APF, Bentzley BS, Eshel N, Malenka RC (2025) Opponent control of reinforcement by striatal dopamine and serotonine. Nature 639, 143-152.
Zutshi I, Apostolelli A, Yang W, Zheng ZS, Dohi T, Balzani E Williams AH, Savin C, Buzsáki G (2025) Hippocampal neuronal activity is aligned with action plans. Nature 639, 153-161.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.