Página Inicial Saúde Atendimentos de saúde mental no RS crescem após enchente – 25/05/2025 – Equilíbrio e Saúde

Atendimentos de saúde mental no RS crescem após enchente – 25/05/2025 – Equilíbrio e Saúde

Publicado pela Redação

Com doações e economia nos gastos, a técnica em enfermagem Suzana Martins de Souza, 43, repõe aos poucos o que a enchente levou de sua casa em Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre.

A cidade foi uma das mais atingidas pela cheia do rio Jacuí, em maio de 2024. A água chegou a 1,4 metro na sua residência, e ficou lá parada por três semanas, destruindo móveis e eletrodomésticos. O carro financiado e ainda com prestações a pagar submergiu e nunca mais funcionou.

Um ano depois, Suzana trata a síndrome do pânico que apareceu após a tragédia do Rio Grande do Sul. Sua principal renda é o auxílio-doença pago pelo INSS, que ela complementa com a venda de doces e salgados.

Durante a inundação, deixou a casa às pressas com a filha de 7 anos e o gato. Na confusão, perdeu o contato com o filho de 19 anos, que ficou incomunicável por mais de uma semana. Após ter o desaparecimento divulgado nas redes sociais, ele foi encontrado em um abrigo. “Ficou dois dias em cima de um telhado, com fome e frio”, conta a mãe. “Achei que ele tinha morrido afogado.”

Suzana voltou para casa e para o trabalho em um hospital depois de um mês. O retorno foi marcado pelo mal-estar constante. “Eu trabalhava, mas trabalhava chorando, com ansiedade, dor no peito, formigamento. Qualquer chuvisqueiro já me transtornava”, lembra.

O diagnóstico de síndrome do pânico veio do atendimento no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) de Eldorado do Sul. Ela passa por atendimentos mensais e faz tratamento com remédios.

No convívio com outros moradores, percebeu que seu caso não era isolado.

“Com todas as letras, a cidade está doente“, diz. “Acredito que a maior parte da população aqui esteja com algum pânico, alguma síndrome, alguma depressão, precisando tomar remédio. Eu tenho vários amigos com essas doenças, tomando muita medicação.”

Em Eldorado do Sul, os procedimentos ambulatoriais subiram 56,7% (de 91 para 143). Nos Caps, foram de 5 mensais para 461. O município foi, proporcionalmente, o mais comprometido pela cheia, com 81,1% dos moradores e 71,2% dos imóveis afetados.

Uma análise da Folha a partir de dados do Datasus mostra que as consultas e atendimentos relacionados a transtornos mentais em hospitais gaúchos cresceram 11,7% na média mensal nos 10 meses posteriores à catástrofe. Foram 64,2 mil atendimentos públicos em outubro do ano passado, o maior pico dos últimos dez anos. A procura pelos Caps teve um pico após maio, mas não subiu nos meses seguintes. As internações psiquiátricas caíram 7,5%.

Somente a partir de dados do SUS (Sistema Único de Saúde) não é possível aferir a relação direta entre a queda geral na qualidade de saúde psicológica e o desastre climático. Mas o pico de alguns municípios, bem como a alta histórica no estado, que perdurou nos meses seguintes, merecem atenção. A enchente do Rio Grande do Sul gerou o maior número de desalojados em um evento do tipo no país.

Especialistas ouvidos pela Folha atribuem a alta a uma nova leva de pacientes, mas também à possível demanda reprimida de habitantes que não conseguiram realizar consultas porque suas cidades perderam postos de saúde e hospitais. Algumas cidades também podem registrar elevações mais agudas por terem atraído pacientes de municípios vizinhos.

“Muitos usuários perderam o acesso aos serviços de saúde durante a enchente. Estamos identificando outros elementos que contribuem para uma busca posterior aos sistemas e equipamentos de saúde mental: perda de medicamentos, perda de receitas, agudização dos quadros clínicos e recaídas”, afirma a professora Juliana Nichterwitz Scherer, pesquisadora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e colaboradora de um estudo sobre saúde mental e mudança climática que ainda está em andamento.



Muitos usuários e pacientes perderam o acesso aos serviços de saúde durante as enchentes. Estamos identificando outros elementos importantes que contribuem para uma busca posterior aos sistemas e equipamentos de saúde mental: perda de medicamentos, perda de receitas, agudização dos quadros clínicos e recaídas

Segundo ela, a queda na busca por Caps, mesmo diante do aumento expressivo nos casos de sofrimento mental, pode ser atribuída a fatores estruturais e contextuais ligados à capacidade de resposta dos serviços públicos após a tragédia, além de barreiras logísticas e econômicas derivadas da enchente.

“Estudos já mostram que, após períodos de calamidade, é comum observarmos um aumento da procura por serviços de atendimento à saúde mental, tanto para novos pacientes quanto para dar conta da demanda reprimida dos antigos”, diz. “Outros estudos indicam que o efeito na saúde mental pode ser silencioso, uma vez que muitas pessoas não buscam ajuda devido ao estigma e à dificuldade de acesso, por exemplo; logo, os impactos a longo prazo podem ser bem danosos.”

Levantamento da Secretaria Estadual da Saúde do RS mostra que 663 estabelecimentos que atendem pelo SUS em 179 cidades sofreram danos à época.

Um estudo conduzido por pesquisadores ligados a quatro instituições, como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, avaliou 5.000 vítimas, de maio a dezembro de 2024, e concluiu que 52% delas apresentavam sintomas depressivos e de ansiedade e 42% de TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático) de 31 a 90 dias depois das chuvas.

Seis meses após a cheia, 1 a cada 4 ainda demonstravam incidência de TEPT. Fatores como falta de eletricidade e de acesso à internet, perda de acesso à casa, contato com a água da enchente e local de trabalho danificado influenciaram a prevalência do transtorno.

Em São Leopoldo, cidade no Vale do Sinos onde 120 mil pessoas foram diretamente impactadas pela cheia, a média de consultas e atendimentos em hospitais dobrou na relação entre os dez meses anteriores e posteriores ao evento: saiu de 86,1 para 178,8. Antes da enchente, o mês com mais atendimentos havia sido outubro de 2023, com 110. Em fevereiro de 2025, o número quadruplicou para 452.

Em Guaíba, a média mensal de 52 consultas foi para 190 após a catástrofe, aumento de 265,6%. Em Porto Alegre, a alta foi de 27,79%.

Considerando apenas consultas ambulatoriais, os diagnósticos que mais subiram foram alguns relacionados ao desenvolvimento de crianças (fala, linguagem e leitura, por exemplo), depressão, transtorno com drogas e síndrome pós-traumática.

Psicóloga da rede municipal de São Leopoldo, Cristina Cannas trabalhou na organização da primeira fase do acolhimento em saúde mental. Depois, com o recuo das águas, ajudou quem retornava para casa. “Nessa etapa, vivenciamos um aumento significativo de casos de sofrimento intenso, inclusive com registros de tentativas de suicídio diante da perda total de moradias e pertences.”

Ana Carolina de Souza, psicóloga da mesma rede, afirma que, passado um ano, a enchente ainda é assunto frequente entre os pacientes. “As falas e os relatos compartilhados pelos usuários dos serviços de saúde mental revelam a busca pela elaboração do luto e pela construção de novos sentidos para a vida e para o futuro.”

O medo de novos alagamentos, a dificuldade de acesso à moradia de qualidade e o afastamento de territórios com os quais as vítimas tinham um senso de pertencimento são pontos ainda frequentes nos depoimentos de hoje.

Metodologia

O processamento de dados para essa análise foi feito a partir da PySUS, biblioteca Python projetada para facilitar o trabalho com os dados abertos do SUS. Para a verificação ambulatorial, a reportagem filtrou os CIDs (Classificação Internacional de Doenças) que começam com a letra “F” –ligados a transtornos mentais e comportamentais, que resultaram ema 6,3 milhões de registros.

Para garantir que só fossem analisadas interações diretas com pacientes, como consultas, uma terceira filtragem selecionou apenas códigos específicos de procedimentos de consulta ou atendimento.

Para a análise dos Caps, os dados foram filtrados já de início pela CID “F” e pelos códigos dos locais de atendimento.

O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde

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