A voz da jovem tremia ao telefone. Sentada em seu carro nos Estados Unidos, mais especificamente no Alabama, estado onde o aborto é quase totalmente proibido, a mãe de dois filhos, de 26 anos, lutava contra uma gravidez indesejada.
“Eu fico tipo, ‘como assim?'”, disse ela, soluçando. “Já tenho dois filhos e não consigo. Não consigo. Simplesmente não consigo levar isso adiante.”
Ela queria fazer um aborto, mas tinha medo de ser pega e não sabia o que esperar do processo.
Do outro lado da linha, em casa, numa rua residencial tranquila no estado de Delaware, Debra Lynch, uma enfermeira que dirige um serviço de prescrição de pílulas abortivas, falou calmamente.
“É perfeitamente válido ter medo”, disse de sua mesa em um escritório em casa repleto de plantas e prateleiras de remédios. “E é por isso que queremos que você nos ligue, mesmo que seja só para dizer: ‘Estou com medo’.”
Durante a conversa de 25 minutos, Lynch perguntou à mulher sobre seu histórico de saúde e gravidez e avaliou que ela tinha direito a medicamentos para aborto que podem ser tomados nas primeiras 12 semanas de gestação: mifepristona, que bloqueia um hormônio necessário para o desenvolvimento da gravidez, e misoprostol, tomado de 24 a 48 horas depois.
Ela explicou cuidadosamente como tomá-los e mencionou que, após o segundo medicamento, haveria cólicas e sangramento que poderiam durar dias.
O marido de Lynch, Jay, embalou os comprimidos em um envelope branco simples e o etiquetou com o endereço do Alabama, bem como o nome do serviço e o endereço do remetente. Um carteiro os retirou da caixa de correio. Junto havia um bilhete escrito à mão: “Estamos aqui para você se precisar de nós. Você não está sozinha. Sinta-se à vontade para entrar em contato a qualquer momento, não importa o que precise.”
Lynch é uma das dezenas de prestadores de serviços no país que correm riscos legais ao prescrever e enviar pílulas para pacientes em estados onde o aborto é proibido. Muitos desses serviços estão sediados em estados com leis de proteção que impedem que autoridades locais cooperem com autoridades de outros estados que tentam processá-los, por exemplo.
Cerca de 20 estados adotaram algum tipo de lei de proteção desde que a Suprema Corte dos EUA revogou o direito nacional ao aborto em 2022. Oito protegem explicitamente os profissionais que enviam pílulas abortivas a pacientes. A lei de proteção de Delaware não é tão explícita, e há diferentes opiniões sobre o escopo de sua proteção, segundo alguns especialistas jurídicos. Por isso Lynch decidiu se mudar para um dos oito estados com as proteções mais claras.
As leis de proteção tornaram-se uma estratégia fundamental para o direito ao aborto e, a cada mês, os médicos enviam medicamentos para cerca de 10 mil pacientes em estados com proibições. Mas as leis estão começando a ser testadas, à medida que as autoridades em estados que proíbem o aborto movem ações judiciais contra esses médicos, um confronto que muitos esperam que chegue à Suprema Corte.
Lynch permitiu que o The New York Times passasse um dia com ela enquanto realizava consultas por telefone com pacientes. Para proteger as identidades, a reportagem concordou em não revelar o nome dos pacientes atendidos.
A visita ofereceu uma visão rara desse trabalho não convencional e das circunstâncias delicadas e complexas que as mulheres que buscam abortos podem enfrentar.
Lynch opera o serviço, chamado “Her Safe Harbor” (algo como “o porto seguro dela”), com outros três médicos voluntários licenciados e seu marido, que assume diversas responsabilidades operacionais e trabalhou anteriormente no departamento de saúde de Delaware.
O serviço, que começou em junho passado, também fornece pílulas anticoncepcionais e tratamento para infecções ginecológicas. Segundo Lynch, são enviados centenas de pacotes por mês, para qualquer endereço informado pelas pacientes.
As orientações da enfermeira seguem o que a maioria desses profissionais recomenda. Mas algumas outras medidas que ela toma vão além do que outros médicos conseguem. Essas, segundo ela, visam alcançar pacientes que estão especialmente preocupadas com privacidade ou nervosas com o processo de aborto.
Ela diz acreditar que os riscos que corre são insignificantes em comparação com os riscos que as pacientes correm ao buscar um aborto. “São elas que estão sendo realmente corajosas, sabia?”
Muitas pessoas que ligam estão em circunstâncias delicadas, diz Lynch. Ela afirma que a preocupação com a segurança e a privacidade foi um dos motivos pelos quais adotou algumas práticas diferentes de outros serviços.
“Muitas vezes se trata de uma situação de violência doméstica ou de alto risco de violência doméstica, ou porque moram com outras pessoas que podem denunciá-las.”
Mulheres em estados onde o aborto é proibido têm opções limitadas. Elas podem viajar para locais onde o aborto é legal, mas isso pode ser caro e envolver tempo longe do trabalho e dos filhos. Algumas obtêm pílulas em redes comunitárias informais que não contam com profissionais médicos ou medicamentos prescritos.
Muitas mulheres escolhem outra opção: serviços de aborto por telemedicina que enviam pílulas pelo correio. Esses médicos costumam avaliar a elegibilidade médica revisando formulários que as pacientes preenchem online, um sistema que muitas consideram conveniente e eficiente.
Lynch diz que seu serviço funciona de forma diferente. Ele foi projetado para pacientes em estados com proibições e restrições ao aborto que desejam falar com um profissional de saúde por telefone ou que se preocupam com a possibilidade de formulários online deixarem rastros eletrônicos, disse ela.
A enfermeira, de 56 anos, teve uma carreira eclética e disse que trabalhou anteriormente em geriatria, com doenças crônicas e outras áreas. Auxiliar uma equipe comunitária de resposta à Covid, no estado da Filadélfia, “de certa forma redirecionou meu foco profissional para uma abordagem mais voltada para as necessidades sociais”, afirma. Depois que a decisão Roe vs. Wade foi anulada, ela quis oferecer apoio a mulheres que buscavam aborto.
Lynch não prescreve pílulas abortivas para mulheres com distúrbios hemorrágicos ou gestações ectópicas, nas quais o óvulo fertilizado fica fora do útero e nunca produz um bebê.
Algumas pacientes perguntam o que devem fazer se quiserem ou precisarem ir a um pronto-socorro. Complicações graves do aborto medicamentoso são raras, e diversos estudos comprovaram sua segurança, inclusive quando os comprimidos são prescritos por telemedicina e enviados pelo correio.
Muito antes da decisão da FDA de 2021, que permitiu o aborto por telemedicina, a agência considerou o medicamento seguro o suficiente para permitir que as pacientes o tomassem em casa e sem a presença de um médico. Mas algumas mulheres querem que um hospital avalie se o nível de sangramento está normal, por exemplo.
Lynch diz que não há razão médica para as mulheres contarem aos hospitais que tomaram pílulas abortivas e que elas podem deixar que os hospitais presumam que elas estão sofrendo um aborto espontâneo, o que envolve os mesmos sintomas e geralmente é tratado com os mesmos medicamentos.
Seu serviço frequentemente realiza ligações de acompanhamento com pacientes após a ingestão da medicação e, às vezes, por vários dias. Em quatro ocasiões ela sugeriu que uma paciente fosse ao pronto-socorro. No fim das contas, tudo correu bem.
Como vários outros serviços de aborto por telemedicina, o “Her Safe Harbor” normalmente cobra US$ 150 (cerca de R$ 830) por pedido, mas também aceita qualquer quantia que os pacientes possam pagar. “No momento, tenho uns US$ 40 (R$ 220) comigo e sei que provavelmente não é suficiente para nada”, disse a paciente do Alabama.
Jay Lynch, que cuida da logística, incluindo cobrança e atendimento telefônico, enviou os medicamentos de graça para ela.