Alvo da CPI da Covid no caso que envolveu a venda da vacina Covaxin ao governo Jair Bolsonaro (PL), a farmacêutica Emanuela Medrades atuou em duas empresas concorrentes durante uma licitação recente do Ministério da Saúde do governo Lula (PT) para uma compra milionária de insulina.
A disputa aberta em 2024 foi vencida pela empresa Star Pharma, que assinou dois contratos que somam R$ 127,4 milhões para fornecer o produto ao SUS (Sistema Único de Saúde).
Emanuela não consta como sócia formal da Star Pharma, mas atua na empresa ao menos desde 2023. Ela é a responsável técnica da licença sanitária da empresa e seu companheiro assina o contrato de insulina como testemunha.
Uma das concorrentes derrotadas, a Medicpharma foi transferida meses antes do certame para Matheus Scarlatte, advogado de Emanuela e da própria Star Pharma. Ele recebeu a sociedade dessa empresa de uma pessoa que é funcionário de uma outra empresa em nome de Emanuela.
Procuradas, Star Pharma, Emanuela e o advogado Scarlatte negaram irregularidades e conluio na licitação. Afirmam que as propostas foram independentes e representaram fabricantes estrangeiros diferentes.
A atuação de Emanuela nas duas concorrentes é reforçada pelo cruzamento de mensagens registradas pelas empresas no sistema eletrônico do pregão com conversas obtidas pela Folha em uma ação judicial trabalhista envolvendo a Star Pharma.
Nas conversas juntadas à ação trabalhista, Emanuela orienta uma funcionária da Star Pharma a telefonar ao Ministério da Saúde e se identificar como representante da concorrente, Medicpharma, para pedir ampliação do prazo para o envio da proposta.
Este diálogo começa às 11h26 do dia 14 de junho de 2024. Às 11h49, a funcionária diz a Emanuela que a equipe do Ministério da Saúde pediu a formalização da nova data no sistema da licitação, o que é feito pela Medicpharma cerca de dois minutos depois.
O edital do pregão eletrônico previa apresentação de propostas em sigilo e vedava entrada de empresas com conexões ou a atuação em conluio. A Lei de Licitações (14.133/2021) também proíbe a participação na mesma disputa de empresas “controladoras, controladas ou coligadas”.
Procurado, o Ministério da Saúde disse que “cumpriu rigorosamente” as regras da administração pública na licitação e que a compra garantiu insulina para o SUS a preços mais baixos. A pasta comandado por Alexandre Padilha (PT) também afirmou que é impedida por lei de realizar apuração individual sobre os representantes das empresas.
O ministério abriu em junho de 2024 o pregão para receber ofertas de insulina. A Star Pharma entrou na disputa representando a Muradouro, de Portugal, e ofereceu a insulina fabricada pela chinesa Tonghua Dongbao Pharmaceutical.
A empresa apresentou a segunda melhor oferta, de R$ 14,35 por unidade, enquanto o lance da Medicpharma foi R$ 13,65.
A Medicpharma, no entanto, foi desclassificada após informar ao pregoeiro que representava uma fornecedora não credenciada no Sicaf (Sistema de Cadastro de Fornecedores) do governo federal. Ela havia levado à disputa produto da fabricante egípcia Sedico.
Assim, a Star Pharma foi declarada vencedora e fechou com o Ministério da Saúde dois contratos de R$ 63,7 milhões cada um (em setembro de 2024 e janeiro deste ano). Os documentos foram assinados por Vitor Duarte —que é companheiro de Emanuela—, como testemunha da empresa de Portugal.
A Star Pharma tem como única sócia oficial Andrea Borges. Nos diálogos anexados à ação judicial, Emanuela afirma que ela “é quem assina pela empresa”. Andrea foi procurada mas não respondeu.
Emanuela e a Star Pharma disseram, na mesma nota, que as concorrentes foram submetidas às mesmas condições na licitação, e que a desclassificação da Medicpharma se deu pela falta da documentação exigida. No total, oito empresas disputaram os contratos.
A nota diz ainda que Emanuela não ocupa cargo na Medicpharma e que ela “exercia atribuições técnicas e gerenciava projetos na Star Pharma”, sem o compromisso de atuar exclusivamente na empresa. “Não há sanção ou impedimento legal contra Emanuela Medrades”, diz a nota. A empresa também diz que os sócios da Star Pharma estão devidamente inscritos e atualizados no contrato social da empresa.
Conversas de Emanuela com uma ex-funcionária, extraídas de ação trabalhista, indicam que ela lidava com pagamentos e contratações, com acesso a contas de e-mail da Star Pharma. Em um dos trechos, a autora da ação refere-se a Emanuela como “CEO” da Star Pharma e os diálogos mostram que ela da ordens para parte dos funcionários.
Emanuela tem sido copiada nos e-mails que a empresa envia ao Ministério da Saúde e representou a Star Pharma em ao menos duas reuniões na Anvisa.
As mensagens foram acessadas pela Folha quando a ação judicial estava pública —a ex-funcionária juntou aos autos uma série de diálogos de WhatsApp. Após questionamentos da reportagem, o processo foi colocado em sigilo.
Os diálogos também incluem discussões sobre mudanças societárias da Medicpharma desde o fim de 2023.
Em nota, o advogado Matheus Scarlatte, dono da Medicpharma, diz que não há garantia de autenticidade sobre as mensagens anexadas à ação trabalhista. Ele próprio atua também como advogado da Star Pharma neste mesmo processo trabalhista.
“O que se observa neste caso é a tentativa de construir uma narrativa altamente especulativa com base em mensagens juntadas unilateralmente a um processo que tramita sob segredo de justiça —mensagens cuja autenticidade, integridade e origem são, tecnicamente, insuscetíveis de verificação”, disse Scarlatte.
As conversas que envolvem Emanuela preenchem 900 páginas. A autora da ação também anexou capturas de tela de trechos dos diálogos.
Além de as orientações de Emanuela para a funcionária da Star Pharma coincidirem com manifestações formalizadas no pregão, discussões sobre mudança do quadro societário da Medicpharma, presentes nos diálogos anexados à ação judicial, também coincidem com as datas de efetivação da entrada de Scarlatte na empresa.
Relatório elaborado no fim de abril pelo Ministério da Saúde ainda apontou atrasos de até 85 dias para envio de uma das parcelas da compra de insulina. A Star Pharma diz que houve “ajuste pontual no cronograma de entrega”. Ainda afirmou que é pública e notória a escassez de insulina no mercado.
Para reforçar as entregas, a Star Pharma incluiu outros fabricantes no contrato: o laboratório Pisa, do México, e o egípcio Sedico, que era representado pela Medicpharma durante a licitação.
Caso Covaxin
Emanuela era diretora da Precisa Medicamentos quando a empresa assinou contrato de R$ 1,6 bilhão com o governo Bolsonaro para a entrega da vacina Covaxin. A CPI sugeriu o indiciamento dela por crimes como o de uso de documento falso, fraude e improbidade administrativa. Ela negou irregularidades.
O governo aplicou multa que supera R$ 20 milhões à Precisa por descumprimento de contrato. O valor chegou a ser cobrado de Emanuela, mas a União retirou o nome dela da dívida neste ano.
A CGU (Controladoria-Geral da União) também barrou a Precisa de licitações por ao menos dois anos. O órgão chegou a citar Emanuela, mas ela não foi punida.