Página Inicial Saúde Archibald chegou e passa bem – 08/05/2025 – Suzana Herculano-Houzel

Archibald chegou e passa bem – 08/05/2025 – Suzana Herculano-Houzel

Publicado pela Redação

Foi no dia 19 de fevereiro, nem bem três meses atrás e apenas horas antes de entrar no carro para o aeroporto de volta para casa em Nashville, quando descobrimos a casa à venda a um quarteirão de distância dos meus pais, numa praia pequena no estado do Rio de Janeiro. Meu marido bateu os olhos na foto do segundo andar da casa, aberto entre mar e montanhas, e soube que ali eu escreveria meus próximos livros. A corretora veio prontamente para a visita.

A casa amarela era simples e linda, paredes de tijolos deitados, portas e janelas amplas cercadas de varandas e jardim, como a dos meus pais, onde passei os verões da minha infância. Eu reconheci a casa à primeira vista, assim como reconheci meu marido quando nos encontramos, dois anos atrás. Meu cérebro já viu você antes: eu entendo como você funciona, e sempre me vi funcionando com você. Depois disso resta apenas resolver os aspectos práticos e legais para concretizar a nova realidade desejada.

E tome aspectos práticos e legais. Mas, para quem tem um córtex cerebral com a capacidade associativa de 16 bilhões de neurônios de usar experiências passadas para representar possibilidades futuras, concretizar a nova realidade desejada é uma questão de estabelecer um objetivo, formular um plano, e ser flexível ao executar o tal plano, pois imprevistos aparecerão.

E como apareceram.

Estabelecido nosso objetivo comum –estar na nossa nova casa no Brasil no começo de maio, onde vou passar os próximos três meses escrevendo longe dos caprichos do rei–, passamos ao planejamento. Dividimos tarefas, meu marido e eu: ele cuidaria de esvaziar e vender a casa dele em Nashville, eu cuidaria de documentos, empréstimos, transferências bancárias, e juntos descobriríamos como trazer Archibald, o dinamarquês, conosco.

Planejar é formular sequências de ações em prol de um estado desejado, o que requer encadear mentalmente representações de comportamentos e as simulações das suas consequências –em princípio, nada extraordinário para um córtex humano já bem vivido. Executar as ações planejadas, por sua vez, requer buscar as informações que servirão de balizas: os parâmetros e regras do jogo, na forma de documentos e dados necessários para transferências bancárias, taxas e escrituras, e transporte e importação do dinamarquês.

E então vem o mundo com suas vicissitudes, e o primeiro comprador desiste, a conta do banco tem que ser outra, o americano precisa tirar CPF, chove torrencialmente no dia de retirar os móveis da casa vendida, meu joelho se arrebenta na véspera da mudança remarcada, o banco do meu marido só aceita fazer transferência aos pouquinhos, o pagamento do sinal precisa ser devolvido e refeito duas vezes, meu banco brasileiro recebe transferência, mas não libera o câmbio, o caixote do tamanho do Archibald primeiro não existe, depois existe, mas ele só pode embarcar de Miami, depois ainda não é grande o suficiente. Enquanto isso eu preciso dar aula, cuidar do laboratório, ir à Índia, à Alemanha, ao Brooklyn, à Califórnia. Haja neurônios.

Um objetivo sem um plano não passa de um desejo, como dizia o papel colado no quadro de avisos da delegacia em Joanesburgo anos atrás. Nem imagino em que contexto aquele papel foi parar lá, mas sua mensagem ficou comigo. Foram 77 dias de idas e vindas, de planos feitos e refeitos, mas conseguimos realizar nosso desejo. Archibald chegou e passa bem, em sua nova casa entre mar e montanha.


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