O fenômeno das bets se espalha no Brasil na esteira de uma legislação frouxa e impulsionado por publicidade agressiva e onipresente. De acordo com o Banco Central, entre janeiro e março de 2025, os brasileiros gastaram de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões por mês em apostas online. Em agosto de 2024, 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família usaram parte de seus recursos em apostas, movimentando cerca de 3 bilhões nas plataformas online, representando aproximadamente 20% do total repassado pelo programa no período.
No Brasil, o apostador possui renda média de até cinco salários mínimos. Segundo levantamento da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, 64% dos brasileiros afirmam usar sua renda principal para apostar, e 63% já comprometeram seu orçamento por causa do jogo. Essa realidade contrasta com a dos Estados Unidos, onde o mercado de apostas também explodiu após a liberação federal em 2018, mas com outro perfil de apostador: homens jovens, com alto nível educacional e renda disponível.
Em reportagem publicada recentemente pela revista JAMA, o pesquisador John Ayers, da Universidade da Califórnia em San Diego, classificou o avanço das apostas como uma epidemia comportamental. De fato, estudos ligam as apostas a transtornos mentais como depressão, ansiedade e ideação suicida, além de alcoolismo, violência doméstica, inadimplência, falência pessoal e conflitos familiares.
Os riscos são potencializados pela natureza digital das apostas modernas. O apostador não precisa mais sair de casa ou enfrentar qualquer tipo de constrangimento social. Tudo acontece no sigilo do celular, 24 horas por dia, sete dias por semana. Essa disponibilidade constante favorece o comportamento compulsivo, encurtando o tempo entre o impulso e a ação. Como lembra Ayers, “antes, se alguém era viciado em jogo, você percebia –havia obstáculos logísticos para ir a um cassino ou a uma casa de apostas. Hoje, a pessoa pode se isolar e manter a compulsão oculta para si”.
O vício em apostas é reconhecido como transtorno psiquiátrico desde 2013, quando foi incluído no DSM-5 ao lado de dependências químicas, como o alcoolismo e o abuso de opioides. Ainda assim, a triagem para jogo compulsivo raramente é realizada na prática clínica, e o tema é quase ausente nas campanhas de saúde pública.
Se o Brasil quer seguir o caminho da legalização, há um longo caminho a percorrer. É fundamental proibir apostas com cartão de crédito, estabelecer limites mensais de gasto e tempo de uso nas plataformas, taxar fortemente as operadoras para financiar programas de saúde mental e restringir publicidade dirigida a públicos vulneráveis, como jovens e pessoas de baixa renda. Além disso, é preciso treinar profissionais de saúde para identificar e tratar o vício.
Indiferentes à crise social que se avizinha –como de costume–, clubes brasileiros assinaram uma nota conjunta contrária ao PL 2.985/2023, que restringe propagandas de bets. Segundo os dirigentes, o texto, que poderá retirar R$ 1,6 bilhão por ano do mundo esportivo, representa o “COLAPSO (em letras garrafais mesmo) financeiro de todo o ecossistema do esporte”. Para os cartolas “o mais cruel é que essas novas regras poderão ser definitivas para a sobrevivência de clubes de menor expressão, que (…) realizam trabalho social importante e carregam a ligação afetiva das suas coletividades nas regiões em que estão sediados”. Esqueceram de exprimir preocupação com crueldades, pelo visto, de segunda ordem, como endividamento em massa, vício, transtornos mentais e suicídio. Apesar do lobby, o Senado aprovou, com modificações, o PL, que segue à Câmara.
Se a história do marketing de tabaco, opiáceos e álcool nos ensina algo, é que não se deve esperar por uma epifania moral da indústria das bets nem de seus cínicos garotos-propaganda. Sob a complacência do Estado, a casa sempre ganha –e só ela.
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