Página Inicial Saúde Carlos Monteiro fala sobre perigos dos ultraprocessados – 12/04/2025 – Equilíbrio e Saúde

Carlos Monteiro fala sobre perigos dos ultraprocessados – 12/04/2025 – Equilíbrio e Saúde

Publicado pela Redação

Não é de hoje que Carlos Augusto Monteiro recusa dinheiro. O professor emérito da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) diz não a investimentos privados nas pesquisas do Nupens, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, desde a concepção do grupo, em 1990.

Foi de lá, e com financiamento público, que saiu o conceito de ultraprocessados, a partir da chamada classificação Nova, cunhada no fim dos anos 2000. Ela é, hoje, base para o Guia Alimentar para a População Brasileira, e divide os alimentos em quatro categorias: in natura –carnes, frutas, legumes, vegetais–, ingredientes culinários –óleo, farinhas–, processados –pães, queijos, frutas em conserva– e ultraprocessados –formados com fragmentos de alimentos por meio de processos industriais que não podem ser replicados em casa.

Segundo Monteiro, a relutância em aceitar financiamentos privados está por trás da existência dessa classificação, que bate de frente com a indústria de alimentos.

Apesar de amplamente abraçada hoje em guias alimentares mundo afora e por órgãos como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), a ideia não foi aceita pela comunidade científica de cara. Até então, a leitura de um alimento era baseada nos seus nutrientes, como gordura e fibras.

Ainda há quem critique a separação, considerada por vezes rigorosa. Josiemer Mattei, pesquisadora da Universidade Harvard (EUA), é uma das que apontam que parecem existir ultraprocessados melhores e piores para a saúde.

São debates saudáveis –a ciência se constrói, afinal, no desafio às hipóteses. A equação se torna mais complicada quando quem desafia são grandes empresas, caso da proposta da Fundação Novo Nordisk –dona da acionista majoritária da farmacêutica por trás da caneta emagrecedora Ozempic.

Em fevereiro, a organização propôs uma novíssima classificação Nova, que movesse os cereais ultraprocessados para fora dessa categoria.

Monteiro não deixou barato –ele publicou uma carta em 26 de fevereiro na qual acusa a vice-presidente da fundação, Arne Astrup, de falta de conhecimento e sugere que a organização age em prol da indústria de alimentos. Segundo reportagem da Reuters, a Novo Nordisk voltou atrás na proposta e retirou as referências à classificação Nova de suas comunicações.

“Não há ultraprocessado do bem, porque a própria definição de ultraprocessado envolve a perda de vínculos com práticas alimentares saudáveis e sustentáveis, bem como o propósito de gerar lucro para a indústria”, diz.

Em entrevista à Folha, o pesquisador revisita o caso e debate a importância do debate sobre ultraprocessados hoje. As respostas foram editadas para maior clareza.

Professor, por que o Nupens rechaçou a proposta da Fundação Novo Nordisk para alterar a classificação Nova?

Rejeitamos uma tentativa da Fundação Novo Nordisk de revisar a classificação Nova por considerarmos que as evidências científicas sobre a Nova são robustas, e não precisamos revisar o sistema, e porque a iniciativa não tem legitimidade científica e apresenta potenciais conflitos de interesse. A classificação Nova, desenvolvida por mim e demais pesquisadores do Nupens, é amplamente reconhecida por entidades como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), além de autoridades de saúde pública em diversos países.

Na carta aberta que publiquei em 26 de fevereiro, destaquei a falta de conhecimento adequado por parte dos envolvidos e sugeri que a iniciativa poderia estar alinhada a interesses da indústria alimentícia. Por isso, solicitei que o projeto não utilizasse o termo “Nova” em seu título ou objetivos, nem sugerisse qualquer conexão com a classificação original ou seus criadores.

Adicionalmente, em 28 de fevereiro de 2025, mais de 90 cientistas internacionais divulgaram uma carta aberta criticando a tentativa de revisão da classificação Nova pela Fundação Novo Nordisk. Eles alertaram para possíveis conflitos de interesse, uma vez que a Novo Nordisk obtém lucros com o tratamento de doenças relacionadas à alimentação, como obesidade e diabetes. Também pediram para que o projeto não utilizasse o termo “Nova” e convocaram a comunidade acadêmica a boicotar a iniciativa.

Essas manifestações refletem a preocupação da comunidade científica em preservar a integridade da classificação Nova e evitar influências que possam comprometer sua credibilidade e aplicação em políticas de saúde pública.

O Nupens é conhecido por recusar financiamento privado, principalmente de atores da indústria. Isso tem a ver com essa recusa da proposta da Novo Nordisk?

O Nupens, desde sua criação, construiu sua trajetória com base na independência e no compromisso com a saúde pública, e por isso, inclusive, achamos que a teoria de ultraprocessados surgiu no Brasil: pelo nosso histórico de recusar qualquer financiamento privado, sobretudo quando proveniente de atores que lucram com doenças relacionadas à má alimentação, como a obesidade e o diabetes.

A proposta da Fundação Novo Nordisk para revisar a classificação Nova se apresenta como cientificamente ilegítima, não apenas por seu conteúdo e abordagem, mas também por seus vínculos com interesses comerciais que claramente conflitam com os objetivos de saúde pública que norteiam nosso trabalho.

A nossa política de produzir ciência sem conflito de interesses é central para garantir a independência científica do grupo e evitar situações que possam comprometer a credibilidade da pesquisa ou suas recomendações em políticas públicas.

A classificação Nova tem um componente que pode ser bastante politizado, que é uma crítica inerente à indústria de alimentos. O senhor acredita que isso retardou a aceitação dos estudos pela comunidade científica?

Sim, é verdade que a classificação Nova, ao propor uma nova forma de olhar os alimentos —não apenas por seus nutrientes, mas pelo grau de processamento industrial e seu propósito—, acaba por tensionar interesses estabelecidos, especialmente os da indústria de alimentos ultraprocessados. Isso naturalmente gerou resistência, inclusive dentro da comunidade científica, onde há uma longa tradição de enfoque nutricional centrado em nutrientes isolados.

A Nova traz uma ruptura, pois desafia o paradigma reducionista da nutrição tradicional e introduz uma crítica explícita ao modelo industrial de produção alimentar. Essa crítica tem, sim, implicações políticas e econômicas —e por isso, seu reconhecimento não foi imediato.

Mas à medida que os estudos foram se acumulando e os impactos dos ultraprocessados na saúde pública se tornaram evidentes, a aceitação cresceu. Hoje, temos o respaldo de instituições como a FAO, a OPAS e diretrizes alimentares em vários países. A ciência, como qualquer campo humano, não está imune a disputas políticas e econômicas. Mas é exatamente por isso que precisamos de abordagens comprometidas com a saúde pública e livres de conflitos de interesse.

O senhor está na lista do Washington Post de personalidades importantes deste ano como alguém que está moldando a sociedade. Como o senhor acredita que a compreensão dos impactos do consumo de ultraprocessados influencia a cultura alimentar hoje? É uma questão que extrapola a questão da saúde e respinga em aspectos econômicos da alimentação.

Esse reconhecimento, mais do que pessoal, é um reflexo da relevância que a nossa perspectiva sobre a alimentação vem ganhando no mundo. A crescente compreensão dos impactos dos alimentos ultraprocessados tem ampliado o debate público sobre o que comemos, como comemos e por que comemos assim —e isso tem transformado, sim, a cultura alimentar em diversos países. O Brasil é referência.

O consumo de ultraprocessados não afeta apenas indicadores de saúde, como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares. Ele afeta também relações sociais, saberes culinários, modos de vida e até valores culturais. Quando as pessoas deixam de cozinhar e compartilhar refeições com alimentos in natura ou minimamente processados e passam a consumir produtos prontos, embalados, formulados para serem hiperpalatáveis e de alto lucro para a indústria, estamos diante de uma mudança que é tanto nutricional quanto simbólica, social e econômica.

A Nova ajuda a explicitar essas transformações. Ela revela que por trás do discurso de praticidade e inovação existe uma estratégia de substituição do alimento de verdade por uma imitação altamente lucrativa. Isso nos obriga a repensar a política alimentar como algo que transcende a saúde individual: envolve regulação de mercados, justiça social, sustentabilidade ambiental e preservação da cultura alimentar dos povos.

Discutir ultraprocessados hoje é discutir o futuro da alimentação —e, em grande medida, da própria sociedade que queremos construir.

Em outras entrevistas o senhor mencionou o debate corrente nos Estados Unidos sobre a alimentação dos americanos, que são associados a uma dieta pouco saudável. É uma pauta abraçada pelo secretário de saúde no país, Robert Kennedy Jr., que é crítico das vacinas e vende o leite cru não pasteurizado como elixir da vida. O senhor acha que a questão dos ultraprocessados tem o potencial para existir acima de polarizações políticas entre esquerda e direita?

Nos Estados Unidos, vemos um cenário contraditório. Há uma preocupação legítima com os efeitos da dieta americana padrão, altamente baseada em ultraprocessados, mas essa preocupação tem sido, em alguns casos, capturada por discursos desinformados ou perigosos, como os que rejeitam vacinas.

Esse tipo de associação é preocupante, pois coloca em risco tanto a credibilidade da ciência quanto a formulação de políticas públicas eficazes. Defender uma alimentação saudável não pode ser confundido com posições que rejeitam avanços científicos fundamentais, como a vacinação.

A questão dos ultraprocessados, portanto, precisa ser debatida com responsabilidade, rigor científico e compromisso com a saúde pública. E, nesse sentido, ela tem, sim, o potencial de ser uma causa compartilhada por diferentes setores políticos —desde que esteja ancorada em evidências, livre de conflitos de interesse e comprometida com a saúde da população e a sustentabilidade do planeta.

A classificação Nova não foi aceita sem resistência da comunidade científica, hoje temos notícias de cientistas que a contestam, por exemplo, sugerindo que nem todo ultraprocessado é igual. Digamos, um pão de forma integral industrializado estaria no mesmo balaio de um salgadinho tipo Cheetos. Como o senhor responde a essas ressalvas?

É natural que uma proposta inovadora como a classificação Nova enfrente debates científicos. Mas, além dos ataques da indústria de alimentos ultraprocessados, enfrentamos também o colonialismo na ciência: somos do sul global, e isso faz com que a comunidade científica global demore mais para incorporar o que propomos. Não à toa, a América Latina é a região com mais avanços na área da alimentação.

A Nova mostra que, como grupo, os ultraprocessados compartilham características tecnológicas e de formulação —como o uso de aditivos, ingredientes de uso exclusivamente industrial, e a substituição de alimentos minimamente processados— que os associam a padrões alimentares desequilibrados e maior risco de doenças crônicas.

Quando se diz que um pão de forma integral estaria no mesmo grupo de um salgadinho, é importante lembrar que a classificação é baseada no grau e propósito do processamento, não no valor “moral” do produto.

Um pão integral feito com farinha integral, água, fermento e sal seria processado. Mas um pão de forma com uma longa lista de aditivos, emulsificantes, conservantes e aromatizantes é ultraprocessado —e deve ser identificado como tal, mesmo que seja percebido como saudável pelo marketing.

A força da Nova está justamente em ajudar a população e os formuladores de políticas a enxergar o sistema alimentar como um todo, e a perceber que o problema não está apenas em nutrientes em excesso, mas em uma lógica industrial de produção alimentar que substitui comida de verdade por produtos com baixo valor nutricional, feitos para gerar lucros para a indústria.

Portanto, reafirmamos: os fundamentos da Nova são sólidos, transparentes e orientados pelo compromisso com a saúde pública. A complexidade dos alimentos não pode ser usada como justificativa para naturalizar ou relativizar os danos causados pelos ultraprocessados.

Em algum momento, o senhor e o Nupens cogitaram repensar a classificação no sentido de criar uma gradação de ultraprocessados? Ou dá para dizer que um pão integral industrializado é tão ruim quanto um salgadinho tipo Cheetos?

Um pão integral industrializado pode parecer mais saudável do que um salgadinho ultraprocessado, mas ambos fazem parte da mesma lógica: alimentos produzidos com ingredientes industriais, voltados à conveniência e à hiperpalatabilidade, que tendem a substituir preparações feitas com alimentos in natura ou minimamente processados.

Portanto, não se trata de comparar Cheetos com pão integral industrializado. Trata-se de reconhecer que ambos pertencem a uma categoria que, como um todo, deve ser evitada. Não há ultraprocessado do bem, porque a própria definição de ultraprocessado envolve a perda de vínculos com práticas alimentares saudáveis e sustentáveis, bem como o propósito de gerar lucro para a indústria.

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