Um grupo de pesquisadores nos Estados Unidos inventaram e patentearam um dispositivo que usa rastreamento ocular para auxiliar no diagnóstico de autismo. O aparelho, chamado EarliPoint e de propriedade da empresa EarliTec, foi aprovado pela FDA (Food and Drug Administration, agência reguladora americana) para a avaliação e diagnóstico de autismo em crianças entre 16 e 30 meses.
O dispositivo pode ser utilizado por qualquer profissional legalmente habilitado para dar diagnósticos médicos, em qualquer local com conexão à internet. O treinamento para usar o aparelho dura menos de uma hora.
Por ele, as crianças assistem a 14 filmes de dez a 12 minutos e têm seus dados de rastreamento ocular coletados 120 vezes por segundo. Dessa forma, o dispositivo usa as medidas objetivas de engajamento visual social, que se refere a como as crianças olham e aprendem sobre seu ambiente social.
O aparelho é visto como uma ferramenta que pode servir como complemento, mas especialistas afirmam que o diagnóstico é clínico e envolve analisar também a história do paciente.
A ciência por trás dos biomarcadores—indicadores que mostram presença ou ausência de doenças ou distúrbios, por exemplo— tem sido desenvolvida por Ami Klin e seu grupo por mais de 25 anos. Desde então, eles publicaram artigos científicos em revistas como a Nature e a JAMA (The Journal of the American Medical Association) , reconhecidas mundialmente, criando evidências que comprovam seu ponto de vista.
“Essa aprovação é o primeiro biomarcador em autismo. Descobrimos que esse olhar social está sob controle genético e vimos que a hereditariedade desse marcador é de 91%”, afirma Klin, que é brasileiro radicado nos EUA. “Por isso, chegamos a um ponto de tentar desenvolver uma solução para o acesso terrivelmente limitado que existe a serviços diagnósticos.”
Segundo ele, o aparelho seria capaz de substituir de seis a dez horas de observação comportamental da criança, que é feita por meio de uma escala geralmente utilizada pelos profissionais de saúde, a Escala de Observação para o Diagnóstico de Autismo (ADOS).
O padrão para o diagnóstico do autismo atualmente é combinar a escala de observação com a escala de entrevista, a Entrevista Diagnóstica para o Autismo Revisada (ADI-R).
Segundo o pesquisador, com o dispositivo, o profissional de saúde teria acesso a um relatório completo (entre dez e 15 minutos após os vídeos) mostrando o diagnóstico categórico, o diagnóstico quantitativo —valor preditivo positivo ou negativo—, a medida de sociabilidade, a idade equivalente na capacidade de linguagem e de aprendizado não-verbal e também o estilo de aprendizado social da criança.
“O Early Point substitui toda a parte direta da criança. E daí o clínico, com o histórico da criança, pode tomar decisão com relação ao diagnóstico e o tratamento”, diz Klin. Ele diz que o objetivo não é que o aparelho substitua os profissionais, mas sim que seja usado como uma ferramenta de qualidade padronizada que chegue a locais onde não há centros especializados, aumentando a acessibilidade e o custo-benefício.
Em termos de saúde pública, um ponto relevante é que tecnologias que facilitam o diagnóstico tendem a aumentar o número de diagnósticos, o que pode sobrecarregar o sistema. O grupo de Klin tinha isso em perspectiva desde o início, e defende que a viabilização do diagnóstico seja acompanhada de modelos de intervenção.
“Nós investimos muito no tratamento precoce, que é a intervenção mediada pelo cuidador. Fazemos pesquisas e difundimos esse modelo, inclusive treinando pessoas que trabalham na comunidade”, afirma.
O que dizem especialistas brasileiros
Um ponto citado por Klin e corroborado por outros especialistas é que o diagnóstico de autismo não é feito exclusivamente por exames ou dispositivos, mas por um profissional capacitado e habilitado para tal.
Guilherme V. Polanczyk, psiquiatra de crianças e adolescentes e professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), diz que procedimentos e exames podem ser complementares, mas o diagnóstico é clínico e envolve não só o exame, mas a história do desenvolvimento.
É importante considerar também a parte qualitativa e subjetiva da avaliação para o diagnóstico. “Inclusive para identificar quais são os prejuízos e quais são as dimensões, digamos, que estão alteradas”, explica Milena Pereira Pondé, psiquiatra, professora adjunta da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, coordenadora do laboratório interdisciplinar de pesquisa em autismo.
Sobre a utilização de biomarcadores para o autismo, a médica diz que existem indicadores clínicos que podem indicar uma probabilidade de desenvolver um determinado problema clínico, mas afirma que existe um ambiente que modula qualquer tipo de marcador.
“Eu acho muito perigoso indicar uma medida objetiva, por exemplo, para indicar intervenção precoce, na medida em que essa medida objetiva não está me falando sobre algum transtorno”, afirma Pondé.
Polanczyk explica que existem muitas pesquisas tentando entender se a dificuldade pelo contato ocular poderia indicar o autismo, usando o rastreamento ocular. “Mas é muito cedo para dizermos que isso possa substituir o diagnóstico”, diz.
Um dos motivos seria o fato que um rastreamento ocular atípico poderia indicar outros transtornos, como o de déficit de atenção, ou algum prejuízo cognitivo ou visual.
“Temos que melhorar e treinar os profissionais na rede pública para o diagnóstico de crianças pequenininhas, e esse dispositivo pode contribuir, mas a gente também vai ter que melhorar o diagnóstico de psiquiatras que estão olhando adultos, que estão vendo pessoas com essas dificuldades mais leves, mais qualitativas”, diz o psiquiatra.
A invenção desses dispositivos causa curiosidade por parte da população. No entanto, os psiquiatras apontam que não basta ter um diagnóstico facilitado se o sistema de saúde não comporta o tratamento de todos que precisam.
“Vai ser eventualmente até prejudicial oferecer uma ferramenta diagnóstica ou que afilia no diagnóstico para a população e disseminar isso sem ao mesmo tempo oferecer serviços para essa população“, comenta Polanczyk.
Conforme o próprio pesquisador e desenvolvedor da ferramenta, esse tipo de iniciativa deve vir sempre acompanhada de um modelo de intervenção e tratamento, que demanda a movimentação de todo um sistema de saúde.
Pondé afirma que, hoje, não há serviços de saúde o suficiente para pessoas com diagnóstico de autismo clássico e nem para o espectro, que é um conceito mais amplo, e questiona se seria viável aumentar a demanda para algo que a saúde pública não consegue comportar com a demanda atual.
“No contexto de pesquisa é um instrumento maravilhoso para ajudar nos avanços dos biomarcadores. Mas para uso na clínica, eu acho que um biomarcador para clínica do desenvolvimento é algo que, pra mim, atrapalha mais do que ajuda.”
O dispositivo foi desenvolvido por um cientista brasileiro, mas foi aprovado e comercializado apenas nos Estados Unidos. Apesar de haver o interesse em trazer o EarliPoint para o Brasil, ainda não há nenhuma iniciativa concreta para que isso aconteça.