Página Inicial Saúde Como usei a neurociência para meu cão entrar em um caixote – 01/05/2025 – Suzana Herculano-Houzel

Como usei a neurociência para meu cão entrar em um caixote – 01/05/2025 – Suzana Herculano-Houzel

Publicado pela Redação

Gostaria de anunciar para o mundo que, à 1h30 da manhã desta quarta-feira (30), eu decretei que tenho um PhD honorário em psicologia animal, conquistado com uma prova de fogo: fazer Archibald, meu dinamarquês, entrar e deitar no caixote que vai levá-lo comigo no avião para nossa temporada no Brasil.

Ativistas animais de plantão, anotem: ele vai viajar com muito mais conforto do que eu. A humana aqui vai passar dez horas sentada desconfortavelmente numa poltrona de dimensões minimizadas para maximizar o lucro da companhia aérea, disputando com os vizinhos lugar para apoiar os cotovelos na nossa lata de sardinha compartilhada. Enquanto isso, meu companheiro canino vai deitado em outro compartimento, numa casinha só dele onde até eu caibo confortavelmente e poderia me deitar. Eu trocaria de lugar com ele sem piscar.

Eu sei porque entrei no caixote dele não uma, mas várias vezes, para demonstrar que nada catastrófico acontecia no objeto extraterrestre que agora ocupava o lugar da cama dele.

Digamos que você só tenha meio bilhão de neurônios no córtex cerebral, em vez dos 16 bilhões com os quais está acostumado. Sua capacidade biológica de fazer inferências e simular estados possíveis caiu para míseros 3% do que era antes. Onde estava sua cama agora tem umas paredes altas, cheias de uns buraquinhos suspeitos, e o teto caiu para pouco acima da sua cabeça. Você não tem experiência anterior alguma com lugares fechados e quartinhos tão pequenos. Você entra? Óbvio que não.

E não é uma questão de seleção natural; é neurociência pura. De um começo onde tudo é desconhecido, a primeira coisa que a gente aprende é que uma determinada pessoa sempre está por perto, e perto dela tudo fica bem. O que o cérebro faz por excelência é associações, e a sensação de conforto na presença daquela pessoa vai se estendendo aos lugares aonde a gente vai com ela, e ao que a gente faz com ela. Em humanos, são anos de aprendizado, porque o córtex do cérebro, cheio de neurônios, se desenvolve devagar. Em cães, são apenas meses.

Se eu sou a referência que oferece conforto ao Archibald, quem ele precisa ver entrar no caixote dele sou eu. Minha filha e marido tentaram enquanto eu estava fora, mas não adiantou. Quem precisava sair ilesa do quartinho escuro e esburacado era eu –e então ele topou botar metade do corpo dentro da caixa para pegar os biscoitos que eu joguei lá. A neurociência também explica: a gente só se move se houver algum vislumbre de recompensa do outro lado.

Mas faltava ele entrar com o traseiro na caixa e deitar nela, porque eu preciso que isso vire o novo normal, e só tenho alguns dias para isso acontecer. Três horas já haviam se passado. Eu queria dormir, mas ele também –mais uma motivação para ele eventualmente ceder.

Foi quando me dei conta que, da perspectiva dele, enquanto o chão da caixa não era muito diferente da cama anterior (e, muito importante, estava no mesmo lugar, já aprovado pelo hipocampo), e as laterais ofereciam suporte de que humanos e cachorros gostam, como um sofá, o estranho mesmo era o teto. Então tirei o teto do caixote. Se com o teto o desafio era entrar no escuro desconhecido, sem ele a proposta era apenas avançar na nova cama em minha direção, chamando por ele do outro lado. Nem foi preciso biscoito.

Bom, agora falta pôr o teto de volta e ele entrar, deitar, e dormir. Talvez meu PhD honorário seja precipitado, mas a neurociência diz que uma ou duas noites bem dormidas na nova cama devem dar conta do recado.


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