Quando chega ao hospital, mais da metade dos idosos com demência fica sem diagnóstico —e isso atrapalha o tratamento. Como administrar uma rotina de cuidados, ajustes de medicação e novas prescrições na alta hospitalar sem saber se aquele paciente já não dá conta de suas tarefas básicas?
Com a ideia de suprir essa lacuna de maneira custo-efetiva, pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP e de instituições parceiras no Brasil e no exterior (Universidade da Califórnia em San Francisco, Universidade Johns Hopkins, Unifesp, entre outras) adaptaram um questionário clínico que se baseia exclusivamente em entrevistas com cuidadores ou familiares que convivem com o idoso ao menos quatro vezes por semana. Nenhuma interação com o paciente é necessária. O estudo foi publicado no periódico Journal of the American Geriatrics Society.
O experimento foi feito com 65 casos, em cinco hospitais brasileiros. Seus acompanhantes foram entrevistados com o novo teste e os próprios pacientes passaram, em paralelo, por uma avaliação padrão-ouro: entrevistas presenciais de até 90 minutos com médicos especialistas. O novo teste, feito à beira do leito ou por telefone, leva cerca de 15 minutos. O resultado foi expressivo: 93% de acurácia na comparação com o padrão-ouro.
O instrumento é uma simplificação de outro já existente, que conta com uma etapa de entrevista com o próprio paciente. Avalia seis domínios afetados pelas demências: memória, orientação no tempo e no espaço, julgamento e planejamento, independência para autocuidado, para tarefas domésticas e para atividades na comunidade.
Uma das grandes vantagens de excluir a entrevista direta com o paciente é evitar o efeito confundidor do delirium: um estado confusional agudo, transitório, que acomete com frequência idosos hospitalizados. “O grande desafio é que a identificação de demência no ambiente hospitalar é atrapalhada pelo problema agudo do paciente. Se você aplicar o teste diretamente, ele pode ir mal —não porque tem uma demência, mas porque naquele momento está com o nível de consciência alterado por uma infecção, desidratação, dor ou até por um remédio que estamos administrando, como os endovenosos com ação no sistema nervoso central”, explica Márlon Aliberti, professor de geriatria da FMUSP e líder do estudo.
O tamanho do problema não é trivial. Pessoas idosas representam cerca de 14% da população brasileira, mas um em cada três pacientes hospitalares já pertence a esse grupo. “O idoso traz para o sistema de saúde —e especificamente para o ambiente hospitalar— desafios diferentes dos adultos. Ele interna por uma infecção urinária, descompensação cardíaca, história de quedas ou necessidade de cirurgia, mas traz consigo também as síndromes geriátricas, esses problemas comuns que surgem com o envelhecimento”, diz Aliberti.
A demência, entre essas síndromes, é das mais críticas. “A equipe de saúde no hospital está muito focada em resolver o problema agudo que levou o paciente até lá, como uma pneumonia ou desidratação. Mas, se não olhar para as síndromes geriátricas, começando pela demência, não vai resolver o quadro completo. O paciente volta pra casa sem apoio, sem orientação adequada, e acaba voltando pro hospital. Fica como um cachorro correndo atrás do próprio rabo, sem completar o tratamento, porque tem algo que impacta diretamente a resolução da causa aguda.”
Embora a ausência de diagnóstico de demências já seja grave nos hospitais, onde atinge 55% dos casos, no sistema de saúde essa taxa se aproxima dos 80%. Daí a importância de ferramentas simples, eficazes e escaláveis, defende o professor.
O estudo faz parte de um esforço maior. O consórcio internacional Change (Creating a Hospital Assessment Network in Geriatrics, algo como Criando uma Rede Hospitalar para Avaliação Geriátrica) reúne 43 hospitais públicos e privados das cinco regiões do Brasil, além de centros de pesquisa na Colômbia, Chile, Angola e Portugal. No total, 2.556 pacientes já foram avaliados com a nova ferramenta, que passou a ser aplicada após treinamento online de 250 profissionais.
A expectativa, agora, é expandir seu uso rotineiro, como forma de aproveitar cada internação como uma janela de oportunidade. “Não pode achar que esquecimento é algo normal da idade”, diz Aliberti. “Há muitos exemplos de pessoas com 90 ou 95 anos que continuam trabalhando e com plena funcionalidade. A perda de memória não é inerente ao envelhecimento saudável.”
Dicas para detectar demências precocemente
1. Esquecimento não é normal da idade. O primeiro erro é achar que todo idoso esquece. “Há pessoas com mais de 90 anos plenamente ativas: trabalhando, cuidando da casa, liderando atividades comunitárias. Quando há perda de memória, algo mudou na trajetória cognitiva daquele indivíduo. Isso é sinal de alerta, não de envelhecimento”, diz Aliberti.
2. Não é só esquecer: é esquecer e deixar de fazer. Deve-se ter atenção redobrada se o esquecimento vier acompanhado de dificuldades em tarefas rotineiras: cozinhar, manter uma conversa, tomar banho, fazer compras, usar o telefone, lembrar compromissos. Mudanças de comportamento também pesam. Um idoso que antes era organizado e passa a se perder nas contas ou sair de casa sem rumo exige avaliação.
3. Procure avaliação médica, e escolha o momento certo. Se notar essas mudanças, o recomendado é procurar um serviço de saúde. Consultórios são ambientes melhores para a avaliação do que hospitais, onde o paciente pode estar sob efeito de infecções, dor, sedação ou estresse agudo, diz o professor. Diagnosticar cedo é o primeiro passo para um cuidado mais eficaz e mais humano.