No livro “Do que eu Falo Quando Falo de Corrida”, o escritor japonês Haruki Murakami diz que na corrida de longa distância, seu único oponente é você mesmo. Ele, maratonista além de escritor, diz que a questão não é ser bom ou ruim, mas “se eu melhorei ou não em relação ao dia anterior”.
Ao cruzar minha primeira linha de chegada, neste domingo (3), como a 539ª colocada entre as 2.149 mulheres da corrida Hello Kitty Run, botei à prova essa ideia.
Flertei com a ideia de correr, e de ser o tipo de pessoa que corre, por mais de dez anos. O que me botou na rua de vez foi saber por amigas sobre essa corrida específica.
Era tudo bem simples: 5 km na região do parque Ibirapuera, em São Paulo. A rota era relativamente plana e no tempo mais ameno de agosto.
Não sou uma superfã da felina —não mais do que qualquer mulher criada nos anos 2000—, mas a medalha de arco-íris com toda a turma da gatinha me pegou.
Tirando a leitura do Murakami, que foi apontada por vários amigos como ponto de partida para a corrida, eu não sabia por onde começar. Soava estranho começar meu treino de corrida lendo um livro. Uma amiga sugeriu um treino endossado pelo NHS (National Health Service), o sistema de saúde público inglês, chamado couch to 5k, ou do sofá aos 5 km. O NHS tem um aplicativo com corrida guiada, indisponível no Brasil, e uma tabela em PDF que diz exatamente o que você deve fazer em cada um dos dias do treino, que dura nove semanas.
O couch to 5k foi criado em 1996, pelo americano Josh Clark. Ele era adepto das corridas e queria convencer sua mãe a começar também. Numa entrevista para a BBC, ele diz que queria tornar mais suave o percurso doloroso e desconfortável do sedentarismo até a corrida.
Parecia perfeito para mim. Minhas atividades físicas se resumiam a aulas de balé e um pilates ocasional. Comprei um tênis simples de exercício —coincidentemente das cores da Hello Kitty— e, com o treino em PDF do NHS em mãos, botei o pé no asfalto.
Comecei com cinco minutos de caminhada para aquecer. Depois, 1 minuto de corrida alternando com 1 minuto e 30 segundos de caminhada. Era só fazer isso sete vezes e caminhar mais cinco minutos para fechar.
Num primeiro momento, pensei que seria mais tranquilo para mim, afinal, não é como se eu fosse realmente sedentária. Mas a cada minuto de corrida que se aproximava, eu olhava o relógio desesperada, calculando quanto daquela tortura ainda faltava. Decidi que, se eu olhasse no relógio e 30 segundos de corrida tivessem se passado, eu estaria no lucro. Mas meus olhos miravam o cronômetro depois de meros 17 segundos.
Tudo era um problema. A respiração ofegante, beirando a falta de ar, a dor nas pernas, a dor do impacto do asfalto nos meus pés. Eu me sentia lenta e atenta a todos os meus movimentos, com medo que eu parecesse ridícula.
Naquele momento, eu havia lido o suficiente do livro do Murakami para vislumbrar o motivo de ele correr megamaratonas e fazer triatlos. A superação de si, dos seus próprios limites. Decidi insistir num segundo dia de treino.
Não demorou até que a sensação de superação desse as caras —um dos objetivos do criador era mesmo agilizar a chegada das recompensas da corrida. O treino do segundo dia era o mesmo do primeiro, acrescido de um minuto de corrida depois das sete repetições. Terminei o percurso com a sensação de que aguentaria correr mais. Eu mal podia esperar para o terceiro treino e os dias de descanso, esses sim, pareciam uma tortura.
A sensação depois de uma corrida é imbatível. Parecia que eu tinha injetado serotonina direto nas minhas veias e que eu era capaz de qualquer coisa. Isso tudo se amplificava se, no dia seguinte, eu acordasse sem dor. Segundo Murakami, que começou a correr numa idade próxima da minha, “eu sentia como se, mesmo depois dos 30 anos, ainda houvesse possibilidades para mim e para o meu corpo”.
Para ele, correr não é uma questão de viver mais, mas de viver a vida ao máximo. Quando a dor nas pernas e a respiração incerta não me tomavam por inteira, parecia mesmo que eu estava espremendo até a última gota da vida.
A cada treino do couch to 5k isso se intensificava. Ao correr na esteira e ultrapassar os dez minutos correndo sem parar, depois 15, depois 20, eu sorria nos minutos finais do treino, atropelada pelo sentimento de que eu tinha conquistado mais pulmão, mais perna, mais tempo. Aos poucos, meu corpo absorvia mais estresse físico e minha mente me obrigada a suportar um pouco mais. Era uma vitória diária sem medalha e sem troféu.
Eu não segui o treino à risca. Ali pela semana 3 ou 4, acordei com os pés detonados por fascite plantar e suspendi as corridas até que melhorasse. Nisso, cheguei às vésperas da Hello Kitty Run sem ter, de fato, corrido cinco quilômetros. Comecei a fazer contas e percebi que, no meu ritmo, eu teria que correr por quase 40 minutos para fazer o percurso. Meu máximo tinha sido 25 naquele momento. Me desesperei e, no último treino do programa, em que se corre por 30 minutos seguidos, precisei parar e caminhar na metade do tempo, com a “dor de facão” na lateral do abdômen.
Murakami diz que uma das metas dele era nunca andar, sempre correr, mesmo que fosse muito devagar. Ele chega a dizer que gostaria que a frase “pelo menos ele nunca andou” estivesse escrita em sua lápide. Essa ideia acompanhou meus treinos finais e me fez insistir, mesmo com dor, em correr mais um pouquinho.
As provas de corrida têm seus mecanismos para dar esse gás. Placas marcando os quilômetros percorridos e com mensagens motivacionais decoradas pela turma da Hello Kitty e em tons de lilás me ajudaram muito mais do que eu gostaria de admitir.
Aos corredores, meu tempo bruto foi de 37 minutos e 57 segundos, com velocidade média de 8,14 km por hora e ritmo de 7 minutos e 22 segundos por km. No ranking geral das mulheres, fiquei em 539º lugar de 2.149 pessoas. Um amigo corredor celebrou: fiquei nos primeiros 25% das colocadas.
No dia da prova, a pressão por não andar que recaiu sobre o Murakami recaiu em mim também. Mas ela vinha só de mim. Mesmo com as palavras —e berros— de incentivo dos outros participantes, não consegui correr o tempo todo.
Tudo bem. Dessa vez, eu andei. Ajustadas as expectativas, posso dizer: pelo menos eu não parei.