Na Cidade do Cabo, na África do Sul, uma das principais pesquisadoras de HIV do mundo tem passado boa parte do dia dizendo gentilmente aos funcionários veteranos e aos jovens doutorandos que o dinheiro acabou e que seus empregos também. Quando as ligações terminam, ela chora em seu escritório vazio.
No coração de Joanesburgo, o saguão de um prédio que já abrigou centenas de cientistas está vazio, mas abarrotado de móveis de escritório descartados e pilhas de arquivos reunidos às pressas de locais de pesquisa fechados.
A África do Sul é, há décadas, uma potência em pesquisa médica, mas sua importância é pouco conhecida por pessoas fora da área. Cientistas sul-africanos têm sido responsáveis por avanços importantes contra grandes causas de morte global, incluindo doenças cardíacas, HIV e vírus respiratórios como a Covid. Eles trabalharam em estreita colaboração com pesquisadores norte-americanos e receberam mais financiamento para pesquisa dos Estados Unidos do que qualquer outro país.
Mas uma série rápida de ordens executivas e cortes orçamentários do governo de Donald Trump destruíram, em questão de meses, esse ecossistema de pesquisa.
Há consequências sombrias para a saúde humana em todo o mundo e também para as empresas farmacêuticas, incluindo gigantes americanas como Pfizer, Merck, Abbott e Gilead Sciences, que dependem fortemente do complexo de pesquisa da África do Sul quando desenvolvem e testam novos medicamentos, vacinas e tratamentos.
“A África do Sul é o farol”, diz Harold Varmus, professor da Weill Cornell Medicine, que recebeu o Prêmio Nobel de medicina por seu trabalho sobre biologia do câncer e foi diretor dos Institutos Nacionais de Saúde.
“Temos muitos trabalhos colaborativos importantes acontecendo lá”, afirma ele, acrescentando: “Cortá-los, eu simplesmente não entendo. É um comportamento autodestrutivo.”
Dezenas de ensaios clínicos críticos que testavam tratamentos e proteções contra gonorreia, diabetes, meningite, câncer cervical e uma série de outras doenças foram encerrados em decorrência dos cortes. As interrupções abruptas deixaram os pesquisadores em dificuldades para encontrar maneiras de fornecer monitoramento e cuidados contínuos para as pessoas, incluindo crianças pequenas, que haviam recebido vacinas ou medicamentos experimentais.
“As implicações disso são enormes”, afirma Ntobeko Ntusi, CEO do Conselho Sul-Africano de Pesquisa Médica. “Uma das maiores histórias de sucesso da África do Sul nas últimas três décadas, em grande parte impulsionada pela generosidade do povo americano, foi o desenvolvimento deste grupo de cientistas de alto calibre que liderou um trabalho acadêmico seminal não apenas para a África do Sul, mas para o mundo inteiro.”
Nem o Departamento de Estado nem o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos quiseram comentar sobre os cortes de financiamento.
A motivação para os cortes provavelmente resulta de uma combinação de forças frequentemente citadas por funcionários do governo: aversão ao envio de dólares americanos para o exterior, preocupações com desperdício e uma vingança particular contra o país, na qual o presidente Donald Trump disse, incorretamente, que há um “genocídio” de pessoas brancas.
No total, centenas de milhões de dólares em financiamento para pesquisa médica na África do Sul foram cortados. Isso inclui pelo menos US$ 260 milhões (cerca de R$ 1,42 bilhões) do Instituto Nacional de Saúde dos EUA e centenas de milhões de outras agências, como os Centros de Controle e Prevenção de Doenças e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional.
“Todos os fluxos de financiamento federal dos EUA foram interrompidos”, afirma Ntusi.
As empresas farmacêuticas dependem do país para ensaios clínicos há décadas. Algumas estão agora repensando sua relação com a África do Sul, de acordo com pessoas familiarizadas com as discussões.
Reitor da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, Shabir Madhi trabalhou com empresas farmacêuticas em diversas novas vacinas, incluindo imunizações contra Covid e doenças diarreicas, e vem se preparando para a próxima fase de um teste de uma vacina pneumocócica. Mas agora ele afirma que os contratados privados que conduzem o teste para a farmacêutica estão “resistindo à inclusão da minha própria unidade de pesquisa em um estudo de vacina, que provavelmente estamos na melhor posição do mundo para realizar”.
Nem todas as pesquisas médicas no país dependem de financiamento americano. Mas até mesmo projetos com outras fontes de financiamento foram interrompidos. Em alguns casos, os fundos restantes são insuficientes para manter os laboratórios funcionando ou pagar os salários dos cientistas, que normalmente trabalham em vários projetos simultaneamente.
O efeito total dos danos só ficará claro nos próximos meses, explica Tom Scriba, professor de imunologia na Universidade da Cidade do Cabo e vice-diretor de um dos principais centros de pesquisa sobre tuberculose do mundo.
Como a África do Sul se tornou uma potência
O primeiro transplante de coração foi realizado na Cidade do Cabo em 1967. O tomógrafo computadorizado foi inventado na África do Sul. O mesmo aconteceu com muitas técnicas cirúrgicas hoje comuns. Vacinas e medicamentos amplamente utilizados nos Estados Unidos —incluindo tratamentos para pressão alta e a imunização contra o VSR— surgiram de pesquisas sul-africanas.
Enormes ensaios clínicos na África do Sul foram essenciais para a velocidade com que as vacinas contra a Covid —de todos os tipos— foram desenvolvidas. Naquela época, foram os pesquisadores sul-africanos que alertaram sobre a mutação do coronavírus para escapar das vacinas originais, que forneceram informações cruciais sobre a variante Beta e que, posteriormente, identificaram e sequenciaram geneticamente a variante Ômicron, fornecendo as informações que a Pfizer e a Moderna usaram para atualizar suas vacinas.
O poder da pesquisa na África do Sul é um legado de sua dura história. Os governos da era do apartheid negligenciaram a saúde de milhões de negros, mas investiram em instituições educacionais e inovação médica para a população branca. Nas décadas desde a transição do país para uma democracia multirracial, essas instituições educacionais têm sido abertas a todos. Mas os esforços para estender os cuidados básicos de saúde têm sido lentos, o que significa que o país ainda apresenta uma alta taxa de doenças. Isso, por sua vez, torna o país um lugar terrivelmente eficiente para a realização de pesquisas.
A África do Sul tem a maior população mundial de pessoas vivendo com HIV, uma das maiores populações de pessoas com tuberculose e um alto número de pessoas com doenças cardíacas e diabetes. Assim, é possível, por exemplo, recrutar mil participantes para um ensaio clínico em um único centro em Soweto em questão de semanas —um processo que poderia levar meses em uma dúzia de centros nos Estados Unidos.
Quando Madhi supervisionou um grande ensaio clínico em fase final da vacina Novavax contra o VSR para gestantes, seis centros na África do Sul inscreveram tantas mulheres quanto 81 outros centros ao redor do mundo. Se as empresas farmacêuticas não tivessem parceiros sul-africanos, afirma Madhi, o custo do desenvolvimento seria tão alto que esta e outras vacinas simplesmente nunca seriam produzidas.
Como o rand sul-africano é uma moeda mais fraca —custando cerca de 20 por dólar americano, ou 3,25 pra o real brasileiro— estudar na África do Sul custa uma fração do que custa nos Estados Unidos.
Os pesquisadores da África do Sul trabalham em instalações de classe mundial que se beneficiaram de investimentos significativos do governo dos EUA e de instituições filantrópicas, como a Fundação Gates, nos últimos 20 anos.
A África do Sul também conta com um órgão regulador médico governamental de alto nível, que certifica ensaios clínicos para atender aos padrões exigidos pelos órgãos reguladores dos EUA e da Europa. “Todos os nossos estudos são estruturados desde o início para ter impacto global”, diz Helen Rees, diretora do Instituto Wits de Saúde Reprodutiva e HIV, que produziu trabalhos pioneiros sobre doenças preveníveis por vacinas, saúde materna e HIV.
O ingrediente final são os relacionamentos: pesquisadores trabalham há décadas nas comunidades onde realizam ensaios clínicos. As pessoas têm visto os resultados diretos da ciência que se voluntariam para testar —novos tratamentos mais curtos para tuberculose, por exemplo— e comunidades inteiras participam de processos de informação e consentimento para novos ensaios clínicos. Isso permitiu que pesquisadores na África do Sul realizassem trabalhos como testar uma vacina contra o HIV em recém-nascidos ou medicamentos em gestantes, que nos Estados Unidos seriam alvo de inquietação pública e preocupações com a responsabilidade civil.
O que o futuro pode reservar
Alguns cientistas sul-africanos conseguem imaginar um futuro próximo em que será impossível para as empresas farmacêuticas operarem lá.
“Minha maior preocupação agora é a possibilidade da África do Sul ser sancionada como país”, afirma Madhi.
O conceito já pareceu rebuscado, mas parece menos implausível depois do encontro de confronto entre Trump e o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, na Casa Branca, no mês passado. As sanções não apenas encerrariam o trabalho das multinacionais farmacêuticas no país, como também restringiriam a capacidade de outras organizações, como a Fundação Gates, de operarem lá.
A fundação, por enquanto, é o primeiro lugar ao qual os pesquisadores estão recorrendo na esperança de encontrar financiamento que permita a continuidade do trabalho.
A fundação já interveio com dinheiro para tentar preservar alguns estudos que já estão em andamento.
As universidades da África do Sul e o conselho de pesquisa médica fizeram apelos emergenciais ao governo do país. A Fundação Gates e outras instituições filantrópicas podem contribuir com parte da contribuição do governo.
Mas isso seria apenas uma fração do que foi perdido. Os recursos financeiros da África do Sul já estavam bastante limitados pela corrupção, infraestrutura decadente, uma economia fragilizada e um governo de coalizão disfuncional.
“Não acredito que esteja dentro das possibilidades do país conseguir preencher essa lacuna”, diz Madhi.
O conselho usará esses fundos para tentar cuidar de pessoas que estavam em ensaios clínicos e preservar estudos que estavam fornecendo dados essenciais para estudantes de doutorado que estavam no meio de seus cursos.
“Corremos o risco de perder uma geração de cientistas —porque as pessoas vão embora”, completa Scriba.
No Centro do Programa de Pesquisa da AIDS em Durban, criado pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA em 2002 e que já perdeu 50% de seu orçamento, cientistas experientes estão tentando confortar seus colegas mais jovens com base nas lições que aprenderam como jovens médicos no auge da luta contra o apartheid.
“Em tempos de adversidade, você também pode ser muito criativo”, diz Qurraisha Abdool Karim, diretora científica do centro. “Então, continuamos pensando com otimismo: o que podemos fazer? Sabemos que será doloroso e que todos nós temos que sofrer com isso. Mas, a longo prazo, como podemos nos reerguer mais fortes?”