Página Inicial Saúde Criaturas da Mente borra fronteira da ciência e religião – 27/05/2025 – Equilíbrio

Criaturas da Mente borra fronteira da ciência e religião – 27/05/2025 – Equilíbrio

Publicado pela Redação

Marcelo Gomes ficou inquieto quando, na pandemia, parou de sonhar. Por algum tempo, ele ainda sentia sono, ainda dormia, ainda descansava. Mas não sonhava. Logo, veio a insônia.

Numa noite sem dormir, topou com um artigo do neurocientista Sidarta Ribeiro para a revista Piauí em que ele debatia o estado da ciência no Brasil em 2020 –início da pandemia e dos episódios de negacionismo científico associados ao governo Jair Bolsonaro.

Gomes achou que Ribeiro poderia ajudá-lo a entender seu novo estado sem sonho e sem sono e decidiu fazer desse incômodo um documentário, escrito com Letícia Simões.

O resultado é “Criaturas da Mente”, lançado neste mês pela VideoFilmes, em que a ideia inicial de sonho e de sono se expande. “Porque, na verdade, não é o sonho, é o inconsciente como um todo”, diz Gomes. “O transe, a psicodelia. Esse foi o barato. O filme é uma viagem de autoconhecimento.”

O documentário tem ares de jornada. Gomes parte das suas noites sem sonhos e ruma a várias direções. Busca respostas nas ciências duras, na religião e nos psicoativos –que ele e Ribeiro experimentam no documentário.

Num primeiro momento, Gomes recorre ao Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde Ribeiro faz suas pesquisas.

O cientista diz que há resistência na biomedicina em aceitar os sonhos como objeto de estudo da neurologia. O auge desse movimento foi a partir dos anos 1950, quando uma “visão biologizante”, segundo Ribeiro, deslegitimou a psicanálise, a etnografia e os saberes originários.

“Não era muito sério estudar sonhos entre os anos 1980 e os anos 2000”, diz. Foi em 2000 que o cientista Bob Stickles, da Universidade Harvard, publicou na revista Science um artigo com a palavra “sonho” pela primeira vez em décadas.

O sonho e o sono exercem papéis significativos na saúde humana. São diretamente conectados à construção de memória e fixação de conhecimento, por exemplo, além de estarem ligados a aspectos da saúde mental.

Ribeiro diz que o sonho e o sono têm funções de agregação social. “A privação de sono causa falta de empatia. A privação de sono faz com que as pessoas considerem as distâncias interpessoais confortáveis maiores. Então, fisicamente, afasta as pessoas”, diz.

São efeitos, ele diz, que se fazem sentir não só na fisiologia, mas no campo simbólico. A perda de contato com o onírico seria, para ele, também a perda de um “detector de coisas que estão acontecendo”.

Mas “Criaturas da Mente” não se ocupa em provar a utilidade do onírico. A ideia por trás do filme é enfatizar o papel social do estado de transe e trazê-lo para o mesmo patamar da vigília.

Aí, entram os saberes originários. Ailton Krenak, escritor, líder indígena e colunista da Folha, cita o caso dos yanomami, que colocam sonho e realidade no mesmo patamar. Trata-se, segundo Krenak, de habitar o sonho em vez de apenas usá-lo para algum fim.

“Acho que a importância maior é respeitar o ato de sonhar. O ato de sonhar como algo fundamental para a vida”, diz o diretor.

Para João Moreira Salles, produtor do documentário, filmar a cosmologia indígena tem desafios, mas ele os relaciona à “dificuldade original” de fazer documentários. “Como representar o outro? Arrisco uma resposta: colaborando com o outro. Buscando não a autoria, mas a coautoria.”

Entram em cena em “Criaturas da Mente” episódios voluntários de alteração de consciência. Com a cabeça numa touca repleta de fios, eletrodos colados ao corpo e um fone de ouvido, Ribeiro inala o DMT (dimetiltriptamina, uma substância psicodélica) extraído da jurema-preta no laboratório da UFRN. As bordas da tela se tornam turvas, mas, à exceção de um efeito sonoro, as imagens não descambam para referências clichês da psicodelia. Nada de mandalas coloridas e música new age. Vemos, por alguns minutos, o rosto de Ribeiro e ouvimos sua respiração profunda.

Mas a cena visual da experiência parecia, sim, o clichê psicodélico. Ribeiro explica que via luzes roxas, verdes e azuis e formatos que se moviam como fractais. Ele diz que pensou em pessoas, em especial, sua mãe.

Foi no mesmo caminho a experiência de Gomes com o DMT obtido da ayahuasca. O cenário, porém, foi diferente. Ele tomou a substância em meio a uma cerimônia religiosa –essa, sem filmagem integral como a de Ribeiro– e relatou depois o que viu. Animais, especialmente duas serpentes, até que viu, como o cientista, a mãe.

Os estudos com psicodélicos passam por um processo parecido com o dos sonhos na história da ciência, avalia Ribeiro. “Aquilo que há três décadas era um fim de carreira, hoje se tornou um assunto muito, muito da hora, uma coisa muito importante.”

O jornalista Marcelo Leite, colunista da Folha e autor de “A Ciência Encantada da Jurema“, subscreve. Cético, ele aparece no filme quase como um contraponto de Ribeiro, mas esclarece que os dois têm “mais convergência do que discordância”.

Leite não acredita em incorporação de entidades. “[A pessoa está] vivendo uma experiência real, mas não consigo acreditar que exista uma entidade de um outro plano”, diz ele, no filme. Para ele, as “criaturas da mente” estão dentro da gente.

Ele diz que esses estados alterados são uma maneira de questionar a nós mesmos. “Essas experiências e rituais me levaram a entrar nesses estados alterados e me mostraram os limites da visão materialista do mundo”, diz. “A gente tende a ver o mundo com base neste enquadramento e tem coisas que ele não dá conta.”

Para Moreira Salles, as epistemologias ocidentais não são a única forma de encarar o mundo. “Criaturas da Mente” mergulha também em terreiros para entender todos os pontos de vista dessa questão. É uma das pontes que ele faz com o documentário.

“Existem outros modos de conhecimento, capazes de responder a outros tipos de pergunta —não necessariamente sobre como as coisas são, mas por que elas são assim. Perguntas mais ligadas ao sentido do que à estrutura do mundo. Essas formas de saber não se excluem, nem se substituem; elas se complementam”, diz o produtor.

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