Um curativo confeccionado a partir de resíduos da indústria pesqueira, com potencial de acelerar a cicatrização de feridas graves, foi desenvolvido por pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e UFLA (Universidade Federal de Lavras). Produzida localmente, a tecnologia é uma alternativa às bandagens importadas utilizadas no SUS (Sistema Único de Saúde).
O principal diferencial do modelo é a alta capacidade de absorção de exsudatos, que são líquidos liberados pelos machucados no processo de cicatrização. Isso é útil em casos como queimaduras de terceiro grau, feridas não cicatrizadas devido a diabetes, úlceras por pressão (escaras) e ferimentos de grande profundidade como os causados por acidentes de trânsito.
A Folha procurou o Ministério da Saúde e dez estados das cinco regiões do Brasil para levantar gastos com a importação de bandagens. Porém, não há dados públicos consolidados sobre essas despesas no SUS. As plataformas de compras públicas não detalham os valores por tipo específico de material nem distinguem a origem nacional ou estrangeira dos insumos.
No entanto, no Pará, este tipo de curativo é comprado exclusivamente por ordem judicial, fora da lista de insumos padronizados da rede estadual. As despesas chegaram a R$ 57 milhões entre 2023 e 2024, e somaram R$ 15 milhões apenas entre janeiro e abril de 2025.
Menos dor
Quanto mais líquido uma ferida produz, maior a necessidade de troca de curativo. Quando uma bandagem têxtil é utilizada, o exsudato faz com que ela grude na área lesionada, o que gera desconforto para o paciente. “É muito improvável que não haja dor em todas as vezes que há troca”, diz Talita Martins, pesquisadora, professora e pós-doutora em ciência e engenharia de materiais, primeira autora do estudo.
Já o novo curativo, como é produzido em forma de espuma, pode ser personalizado para diferentes níveis de secreção das feridas e gerar menos trocas, portanto, menos dor. Ou seja, ele fornece o nível ideal de umidade para uma boa cicatrização, sem deixar o ferimento muito seco ou molhado. Ambas situações são problemáticas para o processo.
“Não dá para abafar aquela região e simplesmente colocar ali um curativo que vai tampar a ferida. Quando uma criança chuta o chão e faz um machucado no pé, se ela calçar uma meia por cima, o que acontece depois? Ela gruda na ferida por causa desse líquido. Agora, pensa em uma ferida maior”, exemplifica Eduardo Nunes, orientador do estudo e coordenador do programa de pós-graduação em engenharia metalúrgica, materiais e de minas da UFMG.
Além da dor nas trocas de curativo, a liberação excessiva de líquido em feridas abertas é um problema porque aumenta a probabilidade de infecção local. Nos casos de diabéticos com dificuldade de cicatrização, isso pode levar até a amputação do membro —em 2023, a doença foi apontada como a responsável por mais da metade das amputações de pernas e pés realizadas no ano anterior, que bateu o maior nível da década em 2022.
Como funciona?
Nos testes laboratoriais realizados com peixes em condições similares à pele humana, o curativo CH50BGF teve capacidade de absorção de líquidos exsudatos de até 160% em 24 horas. Conforme os pesquisadores, esse desempenho é superior a diversos curativos comerciais.
Essa absorção é possível pela combinação da quitosana, um polímero natural derivado de resíduos da indústria pesqueira, com micropartículas de vidro bioativo, um material cerâmico usado principalmente em cirurgias odontológicas.
A quitosana atua como um antimicrobiano natural, mantendo a umidade ideal para a cicatrização e inibindo infecções. Martins explica que a substância é encontrada em carcaças de animais marítimos como camarão, siri, caranguejo e peixes.
O vidro bioativo, por sua vez, libera íons que estimulam a formação de novos vasos sanguíneos e colágeno, o que acelera o fechamento da ferida. O curativo é resultado de dez anos de pesquisa iniciada pela professora Marivalda M. Pereira, da UFMG, que também orienta o estudo.
Como Minas Gerais não tem mar, os pesquisadores firmaram uma parceria com uma empresa de Santa Catarina, que fornece gratuitamente o resíduo da indústria pesqueira necessário para a produção do curativo.
“A velocidade com que eles conseguem nos fornecer esses resíduos é assustadora, justamente porque a quantidade de lixo é grande demais”, afirma Martins.
Quanto custa?
O custo inicial do curativo ficou entre R$ 20 e R$ 30 por unidade, valor que pode ser barateado se produzido em larga escala. O projeto está em submissão para o comitê de ética para conseguir autorização para os testes clínicos com humanos, necessários para validar a produção comercial.
O objetivo principal dos pesquisadores é substituir os insumos importados, reduzir custos e ampliar o acesso à tecnologis no SUS. Eles consideraram as estimativas levantadas por outros cientistas, com estudos de caso na área hospitalar, para nortear a pesquisa e comparar com o custo de produção do novo curativo.
“A gente consegue ter uma ideia dos valores gastos, e cada curativo tem um momento de utilização e um preço. O mais similar ao nosso, no mercado, sai em média entre R$ 80 e R$ 90, cada um”, explica Martins.
Segundo os autores, além de ser uma cadeia sustentável, que dependerá de lixo da indústria pesqueira e produção local, a tecnologia também é uma forma de garantir a independência nacional. “Abre caminho para políticas de saúde mais resilientes, capazes de enfrentar crises globais sem depender de mercados externos”, diz Martins.