Página Inicial Saúde Da raiva à risoria – 05/06/2025 – Suzana Herculano-Houzel

Da raiva à risoria – 05/06/2025 – Suzana Herculano-Houzel

Publicado pela Redação

Minha filha chegou a Nashville mês passado numa mistura de tristeza, frustração e raiva (por causa de um homem, é claro) que a deixou ora prostrada, ora às lágrimas, ora querendo quebrar o mundo. Então fomos resolver o último: Nashville ainda tem um quarto da raiva.

Meu filho foi junto em solidariedade, eu fui junto em nome da ciência. Acho que nós três esperávamos uma salinha com velharias variadas e sem valor em mesas e estantes improvisadas que nós poderíamos destruir à vontade. A realidade era um quarto vazio, pequeno, de paredes revestidas com placas de metal, com um balde de tacos de beisebol (e um martelo) e outros três com as ditas velharias variadas.

Vestíamos os três macacões protetores, capacetes, óculos, máscara, sapatos e luvas. Com zero pele exposta, o risco de danos a nós mesmos era mínimo. Mas eu não estava me sentindo nem um pouco destruidora. Não tenho isso em mim. Quando adolescente, meu escape era o teclado do piano, que aceitava minha ira e a transformava em música. Agora adulta, minha forma preferida de vingança de quem me dá raiva é a volta por cima que me satisfaz enquanto deixa os idiotas embasbacados.

Meu filho, criado lá, mandou ver no taco de beisebol, mas minha filha, razão da experiência, também hesitou. Pegou um pratinho de vidro, ensaiou fazer alguma coisa com ele, deu uns passos. Então olhou pra mim, disse um singelo “Ops”… e deixou o prato cair e se espatifar.

Caímos as duas numa gargalhada deliciosa, acho que com a combinação do inesperado com o absurdo da situação e o incongruente da delicadeza da sua ação num quarto da raiva. Fui experimentar também, e descobri que ainda havia a sensação de libertação de poder fazer o que aprendemos a suprimir no mundo lá fora –deixar algo cair e quebrar, sem qualquer sombra de violência– e simplesmente observar o resultado.

Minha filha foi da raiva ao riso e, pensando a respeito, me dei conta de que não temos nome para a emoção que acompanha as gargalhadas. Não é alegria, que é a satisfação de ver coisas boas acontecerem. Tem um elemento de surpresa, mas não é só isso. Não pode ser simplesmente “riso”, porque riso em português, como seu equivalente em outras línguas, é o substantivo relativo à ação de rir.

Uma emoção é a combinação de um estado fisiológico com um estado mental, ambos resultados de uma ação, seja esta própria ou alheia, e que leva a outra ação como sua expressão. O estado de hilariedade que leva à gargalhada tem todos esses elementos, e portanto é digno de ser reconhecido como uma emoção. Esse estado também tem combinação própria de manifestações cerebrais, com o registro de incongruência pelo córtex cingulado anterior, a ativação acentuada do estriado ventral que causa a sensação de prazer, e a desativação da amígdala que faz o corpo se afrouxar. Ainda assim, os estudos sobre o assunto usam apenas a palavra “laughter”, risada, para se referir ao desfecho de tal estado.

Acho que é portanto hora de reconhecer e nomear o estado emocional de hilariedade que leva à gargalhada. Minha proposta, assessorada pelo meu amigo Bernardo Monteiro, biólogo-cozinheiro-advogado sempre a postos para minhas perguntas aleatórias: esta emoção é risoria, do latim para gargalhando. Risoria não é o ato de rir; é a emoção que leva ao riso, é o sentimento que acompanha o ato mental de achar graça.

Minha filha entrou com raiva, e saiu com risoria. Maravilha.


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