A dor é fácil de entender, até que não seja mais. Um dedo do pé machucado ou um tornozelo torcido doem. Tudo isso faz sentido porque a causa é clara e a dor desaparece à medida que você se recupera.
Mas e se a dor não desaparece? E se mesmo uma brisa parecesse fogo na sua pele, ou sua perna tivesse uma sensação de queimação sem motivo algum? Quando a dor persiste sem uma causa clara, isso é o que se chama dor neuropática.
Somos neurocientistas que estudam como os circuitos da dor no cérebro e na medula espinhal mudam ao longo do tempo. Nosso trabalho se concentra nas moléculas que silenciosamente remodelam a forma como a dor é sentida e lembrada.
Não compreendíamos totalmente como a dor neuropática era diferente da dor relacionada a lesões até começarmos a trabalhar em um laboratório que a estudava. Os pacientes falavam de uma dor fantasma que os assombrava diariamente —invisível, inexplicável e capaz de perturbar suas vidas.
Essas conversas mudaram nosso foco dos sintomas para os mecanismos. O que faz com que essa dor fantasma persista, e como podemos intervir no nível molecular para saná-la?
Mais do que só dor física
A dor neuropática decorre de danos ou disfunções no próprio sistema nervoso. O sistema que deveria detectar a dor se torna a fonte dela, como um alarme de incêndio disparando sem que haja fogo. Até mesmo um toque suave ou uma brisa podem ser insuportáveis.
A dor neuropática não afeta apenas o corpo –ela também altera o cérebro. A dor crônica dessa natureza muitas vezes leva à depressão, ansiedade, isolamento social e uma profunda sensação de impotência. Mesmo as tarefas mais rotineiras podem se tornar insuportáveis.
Cerca de 10% da população dos EUA —dezenas de milhões de pessoas— sofrem de dor neuropática, e os casos estão aumentando à medida que a população envelhece. Complicações decorrentes de diabetes, tratamentos contra o câncer ou lesões na medula espinhal podem levar a essa condição. Apesar de sua prevalência, os médicos muitas vezes ignoram a dor neuropática porque sua biologia subjacente é pouco compreendida.
A dor neuropática também tem um custo econômico. Essa condição responde por bilhões de dólares em gastos com saúde, dias de trabalho perdidos e perda de produtividade. Na busca por alívio, muitos recorrem aos opioides, um caminho que, como visto na epidemia de opioides, pode trazer vícios com consequências devastadoras.
GluD1: um participante discreto, mas crucial
Encontrar tratamentos para a dor neuropática requer respostas para várias perguntas. Por que o sistema nervoso falha dessa maneira? O que exatamente faz com que ele se reconfigure de forma a aumentar a sensibilidade à dor ou criar sensações fantasmas? E o mais urgente: existe uma maneira de reiniciar o sistema?
É aqui que entra o trabalho do nosso laboratório e a história de um receptor chamado GluD1. Abreviação de receptor delta-1 do glutamato, essa proteína geralmente não é destaque nas manchetes. Os cientistas há muito consideram o GluD1 uma curiosidade bioquímica, parte da família dos receptores de glutamato, mas sem função conhecida semelhante à de seus parentes, que normalmente transmitem sinais elétricos no cérebro.
Em vez disso, o GluD1 desempenha um papel diferente. Ele ajuda a organizar as sinapses, as junções onde os neurônios se conectam. Pense nele como um encarregado de obras: ele não envia mensagens por si mesmo, mas direciona onde as conexões se formam e quão fortes elas se tornam.
Esse papel organizador é fundamental para moldar a maneira como os circuitos neurais se desenvolvem e se adaptam, especialmente em regiões envolvidas na dor e na emoção. A pesquisa do nosso laboratório sugere que o GluD1 atua como um arquiteto molecular dos circuitos da dor, particularmente em condições como a dor neuropática, em que esses circuitos funcionam mal ou se reconectam de forma anormal. Em partes do sistema nervoso cruciais para o processamento da dor, como a medula espinhal e a amígdala, o GluD1 pode moldar a forma como as pessoas experimentam a dor fisicamente e emocionalmente.
Corrigindo o mau funcionamento
Em nosso trabalho, descobrimos que interrupções na atividade do GluD1 estão relacionadas à dor persistente. Restaurar a atividade do GluD1 pode reduzir a dor. A questão é: como exatamente o GluD1 remodela a experiência da dor?
Em nosso primeiro estudo, descobrimos que o GluD1 não opera sozinho. Ele se une a uma proteína chamada cerebelina-1 para formar uma estrutura que mantém uma comunicação constante entre as células cerebrais. Essa estrutura, chamada de ponte transsináptica, pode ser comparada a um forte aperto de mão entre dois neurônios. Ela garante que os sinais de dor sejam processados e filtrados adequadamente.
Mas, na dor crônica, a ponte entre essas proteínas torna-se instável e começa a desmoronar. O resultado é caótico. Como uma conversa em grupo onde todos falam ao mesmo tempo e ninguém consegue ser ouvido claramente, os neurônios começam a falhar e a reagir exageradamente. Esse ruído sináptico aumenta a sensibilidade à dor do cérebro, tanto fisicamente quanto emocionalmente. Isso sugere que o GluD1 não está apenas gerenciando os sinais de dor, mas também pode estar moldando a forma como esses sinais são sentidos.
E se pudéssemos restaurar essa conexão quebrada?
Em nosso segundo estudo, injetamos cerebelina-1 em camundongos e observamos que ela reativou a atividade do GluD1, aliviando sua dor crônica sem produzir efeitos colaterais. Isso ajudou o sistema de processamento da dor a funcionar novamente, sem os efeitos sedativos ou interrupções em outros sinais nervosos que são comuns com os opioides. Em vez de apenas entorpecer o corpo, a reativação da atividade do GluD1 recalibrou a forma como o cérebro processa a dor.
É claro que esta pesquisa ainda está em fase inicial, longe de ensaios clínicos. Mas as implicações são empolgantes: o GluD1 pode oferecer uma maneira de reparar a própria rede de processamento da dor, com menos efeitos colaterais e menos risco de dependência do que os tratamentos atuais.
Para milhões de pessoas que vivem com dor crônica, esse pequeno e peculiar receptor pode abrir as portas para um novo tipo de alívio: aquele que cura o sistema, não apenas mascara seus sintomas.