Quando foi convidada a escrever a apresentação da edição de 70 anos de “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir, Mirian Goldenberg se deparou com uma imagem da filósofa se olhando no espelho. Agora, quase seis anos depois, ela se reconhece naquela cena.
“Estou nua no espelho neste livro. Estou me enxergando como nunca antes”, diz ela sobre “Memórias de uma Antropóloga Malcomportada”, lançado pela Record. É sua obra mais íntima —e talvez a mais corajosa.
Beauvoir sempre foi sua principal referência. Mirian leu a autora pela primeira vez aos 16 anos e, desde então, nunca mais deixou de revisitá-la. A obra da francesa “Memórias de uma moça bem-comportada” a marcou profundamente —tanto que um trecho foi usado no início de seu novo livro e como epígrafe do memorial que apresentou para se tornar professora titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro): “Por que resolvi escrever? Temia a noite, o esquecimento. O que eu vira, sentira, amara, era-me desesperante entregá-lo ao silêncio”, diz o trecho.
A homenagem à filósofa está também no título. Mas, como faz questão de frisar, ela não se tornou uma antropóloga “comportada”. Colunista da Folha há 15 anos, Mirian construiu uma carreira marcada por temas pouco acolhidos pela academia tradicional: sexualidade, envelhecimento, infidelidade, corpo, sofrimento e protagonismo feminino.
O novo livro rompe com o tom puramente analítico de suas outras publicações. Parte memorial, parte confissão, a obra reúne episódios decisivos de sua vida pessoal e profissional. “Nunca imaginei que eu viria a me tornar uma antropóloga malcomportada. Achava que a morte era a minha única saída. Mas encontrei outra”, diz. Essa saída foi a escrita.
Desde a adolescência, escreve compulsivamente. “Escrever salvou minha vida”, afirma. Ainda assim, seus textos nunca foram relidos —e menos ainda pensados para publicação. Por isso, hesitou em tornar o novo livro público. “Escrevi cada linha com minhas lágrimas.”
O impulso surgiu em um momento de crise. Ela tinha acabado de escapar de um incêndio em seu prédio, de onde conseguiu salvar apenas o celular, algumas canetas e um caderno em branco. “Eu estava tão deprimida que só conseguia escrever. Escrevi o livro no celular, e eu nem sabia escrever no celular”, conta. Foi uma amiga editora que a incentivou a mostrar os textos. “Tudo o que eu escrevi era para sobreviver.”
Nos primeiros capítulos, ela narra suas poucas memórias da infância em Santos, a relação difícil com a mãe, o ambiente de violência doméstica e o sentimento constante de culpa por não ter conseguido a tirar dali. Também lamenta nunca ter perguntado à mãe sobre sua infância na Polônia. O silêncio da matriarca virou uma busca por perguntas, sentido e histórias.
A leitura foi sua forma de fuga. Enquanto os irmãos tinham mais liberdade, ela vivia sob controle rígido e violento enquanto tentava se tornar invisível para não ser espancada pelo pai. Aos 16 anos, decidiu sair de casa e se mudou sozinha para São Paulo, onde começou a estudar.
Essa trajetória traz como fruto a pesquisadora. Não por uma escolha calculada, mas por necessidade. Seu primeiro livro, “A Outra” (1990), nasceu do impacto das infidelidades do pai, que tinha a secretária como amante, e da vida da mãe, que via chorar e lamentar com frequência a vida que levava. “Desde menina, já sabia que era muito melhor ser a amante do que a esposa”, escreve. “Sem o meu drama familiar, ‘A Outra’ não teria nascido.”
Em seu novo livro, Mirian traz episódios que mostram o que aprendeu com suas pesquisas. Ao longo da carreira, enfrentou estigmas que vinham junto com os temas que tinha interesse. Após o lançamento de “A Outra”, ouvia com frequência a pergunta: “Você já traiu ou foi traída?”. Esse julgamento recorrente foi um marco em sua formação como antropóloga “malcomportada”.
Em seguida, mergulhou na vida de Leila Diniz, ícone da revolução sexual nos anos 1960 e 1970 — a primeira mulher grávida a usar biquíni em público no Brasil. Também pesquisou mulheres militantes de partidos políticos e invisibilizadas. Mais tarde, passou a investigar temas ligados ao corpo, maturidade e velhice, que a fizeram se sentir, como ela mesma diz, um “peixe fora d’água” na academia.
Mesmo agora, ao expor tanto de si, ela afirma que sua paixão ainda é, enquanto atropóloga, mergulhar na vida dos outros. “O que eu gosto de fazer é compreender os nossos sofrimentos por sermos diferentes. Não a partir da minha trajetória, mas das pessoas que eu estudo.”
A escrita, assim, se tornou sua forma mais íntima de resistência, diz. “Se eu não tivesse tido uma família tão violenta, com tanta miséria afetiva, e não tivesse que me esconder tanto pra não ser espancada, talvez eu não tivesse encontrado na escrita, na observação, no estudo, um caminho pra sobreviver.”
Não à toa, em 2024, se tornou a primeira personagem acima dos 60 anos a ser representada pela Turma da Mônica. O coelho Sansão de Mirian virou caderno e caneta.
Com uma linguagem clara, direta e acessível —a mesma que usa em seus textões nas redes sociais— o livro se dirige tanto a jovens pesquisadores que não sabem por onde começar, quanto a leitoras e leitores que talvez reconheçam ali suas próprias dores. “A antropologia, pra mim, foi uma maneira de compreender a cultura em que vivo e perceber que meus sofrimentos não são só meus. São de milhões de mulheres.”
Com o lançamento do livro, Mirian agora cogita publicar alguns dos cerca de 300 cadernos que escreveu ao longo da vida. “É a primeira vez que penso em ver o que eu escrevia e sentia aos 16 anos.”
Ao pleitear a vaga de professora titular na UFRJ, ela dizia querer ser “meio Simone de Beauvoir, meio Leila Diniz”. Foi aconselhada pelo antropólogo Roberto DaMatta a ser apenas ela mesma. Hoje, responde: “Sou 100% Mirian Goldenberg —porque sou a soma ou a mistura de todas essas mulheres, inclusive a minha mãe.”