Página Inicial Saúde Flúor na água: estudos controversos ameaçam política – 03/07/2025 – Equilíbrio

Flúor na água: estudos controversos ameaçam política – 03/07/2025 – Equilíbrio

Publicado pela Redação

Durante décadas, o flúor na água foi celebrado como um marco na saúde pública mundial. Desde que a cidade de Grand Rapids, em Michigan (EUA), se tornou pioneira na fluoretação, em 1945, a prática ganhou o mundo como uma estratégia eficaz, segura e acessível para combater uma das doenças mais antigas da humanidade: a cárie dentária. Quase um século depois, porém, a fluoretação da água vem sendo atacada por estudos controversos e pela desinformação.

Em 2025, os estados de Utah e Flórida, nos Estados Unidos, aprovaram leis proibindo a adição de flúor aos sistemas públicos de abastecimento de água. As decisões foram motivadas por preocupações sobre potenciais riscos para o desenvolvimento neurológico infantil, em um debate que vem prejudicando a percepção pública de uma prática estabelecida e, até então, quase inquestionável.

O ponto de partida não foi uma mudança de posição das grandes entidades científicas. Ao contrário: a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) e a Associação Dental Americana (ADA) seguem recomendando a fluoretação da água. O que reacendeu a polêmica foram pesquisas recentes, como a publicada em março na revista Environmental Health Perspectives, que têm alarmado gestores públicos.

Realizado por pesquisadores do Instituto Karolinska, na Suécia, o estudo acompanhou cerca de 500 crianças de uma população rural em Bangladesh desde o pré-natal até elas completarem 10 anos. Durante o período, os pesquisadores analisaram amostras de urina para medir a exposição ao flúor a partir de diversas fontes: água potável, alimentos e produtos dentários. A pesquisa concluiu que existe uma associação entre níveis relativamente baixos de exposição ao

flúor durante a gestação e a infância (inferiores ao limite de 1,5 mg/L recomendado pela OMS) e uma queda nos índices de inteligência e habilidades cognitivas dessas crianças aos 10 anos.

O trabalho aponta que mesmo pequenas quedas no desempenho cognitivo, quando aplicadas a grandes populações, podem ter impacto relevante na sociedade. Embora os pesquisadores enfatizem que o estudo não comprove uma relação de causa e efeito definitiva e que sejam necessárias mais pesquisas em outros contextos socioeconômicos e ambientais, descobertas como essa vêm gerando alarmismo e reabrindo o debate sobre a validade da fluoretação como política de saúde pública.

“Nos últimos anos, alguns estudos sugeriram a exposição a altos níveis de flúor com possíveis efeitos adversos, principalmente, em crianças em fase de desenvolvimento neurológico”, explica a cirurgiã-dentista Bruna Fronza, professora da graduação em Odontologia da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein (FICSAE). “Mas é importante ressaltar que esses estudos apresentam limitações metodológicas, como a falta de controle para outras variáveis ambientais ou fontes adicionais de exposição ao flúor, o que compromete a confiabilidade dos dados e das conclusões apresentadas.”

Estratégia de sucesso

A lógica do flúor na água é simples, mas engenhosa. A substância fortalece o esmalte dental ao ajudar na remineralização dos dentes, revertendo pequenas perdas minerais diárias causadas por ácidos produzidos pelas bactérias em contato com alimentos e bebidas açucarados na boca. Assim, ela age como um escudo protetor, dificultando o desenvolvimento das cáries. Além disso, por ser distribuída universalmente na água, alcança toda a população, especialmente aqueles com menos acesso a produtos odontológicos e serviços dentários.

O dentista Paulo Frazão, professor titular do departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), explica que toda fonte de água contém fluoreto, mas a estratégia de ajustar a concentração se mostrou uma opção de baixo custo, alta eficácia preventiva e segura para a saúde humana. “É a única medida conhecida de redução da desigualdade de cárie entre crianças e adolescentes de diferentes níveis de renda familiar, desde que a água tratada e fluoretada alcance bairros ricos e pobres”, afirma.

No Brasil, a fluoretação da água foi estabelecida pela lei nº 6.050, de 1974, após uma longa trajetória de estudos e reconhecimento internacional da eficácia dessa estratégia na prevenção da cárie. Com a lei federal que obrigou a adição de flúor aos sistemas públicos de abastecimento, o país viu uma queda expressiva nos índices de cárie dentária ao longo das décadas seguintes.

“As estatísticas referentes ao índice de dentes cariados, perdidos e obturados evoluíram positivamente nas últimas décadas e revelam o quão significativa é a fluoretação das águas de abastecimento público para garantia da proteção da saúde bucal dos brasileiros”, diz Claudio Miyake, presidente do Conselho Federal de Odontologia (CFO).

Em 1980, o Ministério da Saúde estimou o CPOD nacional aos 12 anos de idade — índice que avalia a média de dentes cariados, perdidos e obturados em dentes permanentes — em 7,3. O número, elevado pelos critérios da OMS, colocava o Brasil no patamar de países pobres e com alto índice de cárie. A queda foi gradual: 6,7 em 1986, 3,1 em 1996, 2,8 em 2003, 2,1 em 2010 e chegou a 1,7 em 2023, posicionando o Brasil entre os países com baixa incidência de cárie.

Riscos reais e suposições

Os riscos à saúde associados ao excesso de fluoreto na água são conhecidos desde a segunda metade do século 20. O efeito colateral mais comum é a fluorose dentária, que pode causar manchas esbranquiçadas nos dentes em sua forma mais leve. Mas mesmo esse risco é reduzido quando os níveis de flúor na água são devidamente monitorados, como acontece no Brasil.

Casos de fluorose severa, que afetam a estrutura dos dentes, são raros em locais onde a fluoretação é feita com controle técnico. “É importante destacar que o principal fator de risco para a fluorose leve não é a água fluoretada, mas sim o uso inadequado de cremes dentais com flúor em crianças pequenas, como deixar a criança escovar sem supervisão e engolir pasta em excesso”, explica Fronza. Em 2024, o National Toxicology Program (NTP), dos Estados Unidos, publicou uma revisão abrangente de 74 estudos sobre a exposição ao flúor e neurodesenvolvimento infantil. Os autores identificaram uma associação entre altos níveis de fluoreto na urina e pequenas reduções de QI em crianças.

O resultado, embora estatisticamente significativo, tem sido interpretado com cautela por muitos especialistas. Isso porque a revisão, assim como na pesquisa do Instituto Karolinska, foi classificada como de baixa qualidade metodológica. Os autores também reconheceram que a correlação não significa uma relação de causa-efeito e que mais estudos são necessários para fundamentar a questão.

“O fato é que as observações desses estudos não mudam as evidências científicas sobre a efetividade e a segurança da prática da saúde pública da fluoretação da água”, aponta Frazão. “Entretanto, interpretações equivocadas de profissionais não especializados nas redes sociais em busca de notoriedade podem ser utilizadas para angariar atenção do público e contribuir para erodir o apoio à política pública, como acontece com os programas de imunização.” Um estudo da Harvard School of Dental Medicine, publicado no último dia 30 de maio no JAMA Health Forum, constatou que, em apenas cinco anos, o fim da fluoretação da água poderia resultar em cerca de 25,4 milhões de dentes cariados a mais em crianças — com um custo estimado de US$ 9,8 bilhões em tratamentos odontológicos.

O impacto recairia sobretudo sobre crianças de baixa renda, ampliando desigualdades e gerando uma sobrecarga econômica com tratamentos. “Eliminar o flúor da água acarretaria não apenas prejuízos à saúde bucal da população como também sobrecarga econômica e ampliação de desigualdades no acesso ao cuidado odontológico”, alerta a cirurgiã-dentista Letícia Mello Bezinelli, coordenadora da graduação em Odontologia da FICSAE.

Caminhos para saúde bucal no Brasil

Enquanto nos EUA decisões recentes colocam em xeque a política de saúde pública adotada há mais de sete décadas, o Brasil mantém sua diretriz de ampliar o alcance da fluoretação nos sistemas de abastecimento. No entanto, os desafios estão longe de serem resolvidos.

Segundo Frazão, a lei de 1974 determina que a fluoretação deve ser adotada em todas as localidades do país que contam com estação de tratamento de água. As informações sobre a aplicação da medida se baseiam nas declarações das próprias empresas e serviços de abastecimento que atendem os municípios. Em 2018, o pesquisador da USP participou de um estudo sobre a fluoretação no país, concluindo que pouco mais da metade dos municípios realizava vigilância da qualidade da água e, entre esses, pouco mais de 40% apresentavam fluoretação em níveis considerados ótimos. “Há importante espaço para expandir e qualificar a implementação da política pública em nosso país”, avalia.

De acordo com o Conselho Federal de Odontologia, estudos apontam que cerca de 25% dos brasileiros ainda não contam com cobertura adequada de fluoretação. “Em algumas localidades, são maiores os índices de CPOD, o que corrobora a relevância da adição do flúor nas águas de abastecimento público”, acrescenta Claudio Miyake. Para ele, o caminho passa por ampliar os serviços públicos odontológicos, incluindo não apenas o acesso a tratamentos dentários, mas também a programas de prevenção e orientação – a exemplo da lei nº 14.572, de 2023, que instituiu a Política Nacional de Saúde Bucal.

Bruna Fronza lembra, ainda, que o flúor não atua sozinho. Ele funciona em conjunto com outras práticas essenciais para manter dentes e gengivas saudáveis, como escovar os dentes três vezes ao dia, usar o fio dental, evitar o consumo excessivo de açúcar entre as refeições, beber água potável (preferencialmente fluoretada) e consultar o dentista com regularidade.

“Todas essas ações exigem participação ativa do indivíduo e da população, o que nem sempre é viável em contextos de vulnerabilidade social”, resume a especialista do Einstein. “Já a fluoretação da água é uma forma ampla de proteção, que não depende do comportamento individual para gerar benefício. Por isso, é considerada uma estratégia efetiva em saúde pública.”

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