Imagine a situação: Kamala Harris assume a Presidência dos EUA e passa a pressionar universidades para que disciplinem estudantes judeus, impedindo que enverguem quipás e talits, ou que qualquer aluno exponha a bandeira de Israel, mesmo na janela de seu dormitório.
A justificativa fictícia seria que tais símbolos equivalem a apoiar o genocídio na Faixa de Gaza e constituem agressão contra estudantes palestinos e árabes em geral, que se sentiriam assim ameaçados. Em caso de resistência das reitorias, a presidente cortaria verbas de pesquisa e ensino que a Casa Branca lhes destina.
É bem esse absurdo que Donald Trump está perpetrando contra a academia norte-americana, com sinais trocados. Alega, contra a Primeira Emenda da Constituição, que usar keffiehs ou mostrar bandeiras palestinas ameaça a segurança de judeus no campus. Conseguiu pôr Columbia de joelhos, mas não Harvard, que brilhou nesta hora da verdade.
Cabe aqui um alerta: fui Nieman Fellow da universidade, na turma de 1998. Usufruí do que os EUA têm de melhor, debate livre de boas ideias e ciência feita com recursos inimagináveis no Brasil. Tais bênçãos nunca impediram de ver que esse país tem outra face, suja, feia e malvada, como a exibida por Trump.
O reitor de Harvard, Alan Garber, de início não posou de galo. Declarou-se aberto a trabalhar com o governo para combater antissemitismo, mas protegendo a comunidade e a liberdade acadêmica. Tomou uma invertida de Trump, que escalou as exigências, como submeter a auditoria governamental todas as contratações e matrículas ou delatar estudantes “hostis a valores e instituições americanas”.
A reitoria respondeu com uma carta de seus advogados William Burck e Robert Hur, respeitados conservadores, apontando que tais demandas feriam a Primeira Emenda. “Harvard não está preparada para concordar com exigências que vão além da autoridade legal desta ou qualquer outra administração.”
Trump então congelou US$ 2 bilhões (R$ 11,75 bilhões) dos US$ 9 bilhões (R$ 52,9 bilhões) em fundos federais previstos para a instituição. A título de comparação, foi de R$ 8,6 bilhões o orçamento de 2024 para toda a USP, a primeira universidade da América Latina em alguns rankings, uma das 200 melhores no mundo.
A dotação (endowment) de Harvard é de US$ 53,2 bilhões (R$ 312,5 bilhões), fundos próprios superiores aos PIBs de países como Portugal e Peru. Tem bala na agulha para enfrentar a tirania de Trump. Se não fosse ela para liderar a reação, que outra universidade se arriscaria?
Tudo que o presidente laranja de Elon Musk faz nesses casos é ilegal e imoral. Sob o pretexto orwelliano de defender direitos civis em instituições de ensino, Trump desrespeita as provisões da legislação sobre isso (Título VI). Precisaria promover audiências, comprovar formalmente não conformidades de programas específicos e enviar ao Congresso relatório expositivo 30 dias antes de suspender verbas.
O valentão da Casa Branca não fez nada disso. Harvard, que não nasceu ontem, mas em 1636, não se limitou a lhe enviar uma carta altiva e foi a Wall Street atrás de US$ 775 milhões (R$ 4,4 bilhões) em empréstimos. Falou na língua que ele entende, a do dinheiro grosso.
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