Página Inicial Saúde Hidrocefalia, confundida com demência, é tratada pelo SUS – 28/06/2025 – Equilíbrio e Saúde

Hidrocefalia, confundida com demência, é tratada pelo SUS – 28/06/2025 – Equilíbrio e Saúde

Publicado pela Redação

A aposentada Marlene Marini Francisco, 80, passou pouco mais de dois anos preocupada com a saúde do marido, Daniel Francisco, 82. Ele, que era ativo e realizava sozinho as tarefas do dia a dia, começou a andar com os pés arrastados e sem equilíbrio, teve episódios de incontinência urinária e apresentou problemas de memória —a ponto de não reconhecer a esposa, com quem está casado há 52 anos.

Francisco, aposentado, recebeu o diagnóstico errado de Alzheimer e chegou a tratar a condição pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Depois de uma consulta particular, descobriu que tinha hidrocefalia de pressão normal, doença caracterizada pelo acúmulo de líquido cefalorraquidiano (LCR, também chamado de liquor) no cérebro, e que recentemente afetou o cantor Chico Buarque, 81.

Quando conseguiu marcar a cirurgia para colocar uma válvula que ajuda a drenar o líquido acumulado no cérebro, ele deu entrada no hospital com dificuldades para caminhar, usando uma cadeira de rodas. Hoje, lembra pouco do que viveu nesses dois anos sem o diagnóstico correto, devido ao impacto da doença na sua função cognitiva.

“Eu consigo lembrar da minha vida antes da doença, mas não tenho memória desses dois anos”, relata.

Professor de neurocirurgia na USP (Universidade de São Paulo), Fernando Gomes explica que a hidrocefalia de pressão normal costuma surgir após os 65 anos e se manifesta, em geral, com três sintomas.

“O paciente apresenta dificuldade para caminhar e manter o equilíbrio, incontinência ou urgência urinária, que é a incapacidade de segurar a urina até chegar ao banheiro, e uma alteração cognitiva, com perda da memória de curto prazo, da concentração e da velocidade de raciocínio”, diz o médico, que também é diretor da Sociedade Mundial de Hidrocefalia (Hydrocephalus Society, em inglês).

Os sintomas, segundo Gomes, são comumente confundidos com as doenças de Alzheimer e de Parkinson. Por isso, ele reforça a necessidade de uma avaliação médica mais precisa ao notar esses sinais.

“Nem sempre vão aparecer os três sintomas, mas isso acontece em mais de 50% dos casos. O mais comum é a apraxia de marcha, ou seja, se o paciente começou a andar esquisito, sente a perna agarrada ao chão como um imã, isso não é Parkinson, pode ser hidrocefalia”, aponta.

No SUS, o Ministério da Saúde afirma que o diagnóstico da hidrocefalia de pressão normal envolve avaliação clínica e exames de imagem. “A avaliação clínica tem por objetivo identificar os sintomas: déficits cognitivos, distúrbios de marcha (o andar) e incontinência urinária. O distúrbio de marcha é o sintoma mais prevalente, presente em cerca de 90% dos pacientes.”

Apesar disso, a doença ainda é subnotificada no Brasil, de acordo com Raphael Ribeiro Spera, médico assistente do setor do pronto-socorro da divisão de clínica neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Para ele, isso acontece principalmente pela dificuldade em acesso ao exame de imagem e pelo desconhecimento sobre a doença.

“Essa doença tem um diagnóstico muito difícil. Primeiro, porque pelo SUS muitas vezes é difícil você conseguir um exame de neuroimagem, uma tomografia ou, idealmente, uma ressonância. Pode demorar de seis meses a um ano para que o paciente consiga ter acesso”, explica.

Para o especialista, membro da ABN (Academia Brasileira de Neurologia), muitos médicos, ao avaliarem um paciente com sintomas de perda cognitiva, já relacionam o quadro ao diagnóstico de demência. Ele ressalta, no entanto, que embora não seja raro que os idosos tenham mais de uma doença ao mesmo tempo, a cirurgia para hidrocefalia ainda é necessária para melhora do quadro de saúde.

“Não há medicamentos disponíveis para tratamento da condição, a cirurgia é o padrão. Quando há algumas contraindicações a o procedimento, como em pacientes com múltiplas comorbidades graves, é possível tratar os sintomas de forma isolada, como reabilitação cognitiva com o neuropsicólogo e fisioterapia.”

Para Gomes, o diagnóstico e o tratamento precoce são essenciais para uma melhor qualidade de vida do paciente. “Se você opera com até 24 meses do início dos sintomas, a chance de recuperação é muito maior. Conforme o tempo passa, essas alterações que são temporárias no cérebro vão ficando cristalizadas, lesando de forma definitiva os neurônios.”

No caso de Francisco, que recebeu o tratamento cerca de dois anos depois do surgimento dos sintomas, a recuperação foi mais fácil, mas ainda teve algumas lesões permanentes. Quem lembra de tudo é a esposa, que cuidou do aposentado nesse período. Ela conta que o marido teve alta no dia seguinte após o procedimento.

“Ele saiu conversando, brincando e pedindo para comer. É outra pessoa. Foram dois anos muito difíceis, ele não conseguia nem se mover sozinho e parou até de andar. Depois da cirurgia, feita em 2017, ele ficou bem, apesar de ainda ter perda de raciocínio.”

Para ajudar no diagnóstico e na decisão sobre a cirurgia, os médicos também podem realizar um exame disponível no SUS chamado de TAP test, que consiste na retirada de uma pequena quantidade do liquor por punção lombar.

Após esse procedimento, o paciente é reavaliado para verificar se há melhora na marcha e nos sintomas cognitivos. Gomes detalha que se o paciente responde positivamente, a chance de sucesso da cirurgia é alta.

A hidrocefalia de pressão normal não leva ao óbito de forma direta, mas pode trazer complicações sérias se não for tratada. Com o acúmulo de líquido no cérebro, os sintomas da doença aumentam o risco de quedas, infecções e outras complicações que, principalmente em idosos, podem resultar em desfechos graves.

Pelo SUS, pacientes com hidrocefalia de pressão normal podem fazer cirurgia para implante de uma válvula fixa, que drena o excesso de liquor do cérebro para a cavidade abdominal (peritônio), onde o organismo o reabsorve e o elimina, explica Spera.

Esse tipo de válvula tem uma pressão de abertura pré-definida (baixa, média ou alta), que não pode ser ajustada após o implante. Se a pressão for muito baixa, pode ocorrer hiperdrenagem e sangramentos no cerébro. Se for alta, Gomes afirma que a drenagem pode ser insuficiente, e os sintomas da doença continuam.

Como a válvula não é ajustável, qualquer inadequação exige nova cirurgia. “Em alguns casos, trocamos por outra com pressão diferente. Mas há risco de que a nova também não seja ideal”, diz Gomes. Quando há sangramento, o hematoma precisa ser tratado e a válvula removida. Se o paciente for muito frágil para uma nova operação, o tratamento segue com medicamentos, fisioterapia e acompanhamento clínico.

“Apesar dessas limitações, a maioria dos pacientes evolui bem com a válvula fixa”, destaca Spera.

Já a válvula programável, disponível em centros privados, permite ajustes de pressão sem nova cirurgia, o que reduz riscos. Embora não esteja no rol do SUS, pode ser adquirida por estados e municípios, segundo o Ministério da Saúde.

No estado de São Paulo, por exemplo, o governo diz oferecer tanto válvulas fixas quanto reguláveis, compradas com recursos estaduais. Entre janeiro e abril de 2025, foram feitas 328 cirurgias para tratamento de hidrocefalia no estado; em 2024, foram 1.456 procedimentos.

Segundo a Secretaria Estadual de Saúde, as filas para consultas e cirurgias são descentralizadas, o que impede saber o número de pacientes na espera ou o tempo de espera. A gestão atual busca unificar essas filas por região e torná-las públicas, priorizando os casos urgentes, afirma a pasta em nota.

No Brasil, o Ministério da Saúde informa que, entre 2020 e abril de 2025, foram feitas 1.112 cirurgias para implante de válvula fixa em casos de hidrocefalia de pressão normal, sendo esse o procedimento mais realizado no SUS, diante de outras opções como a derivação ventricular externa-subgaleal (técnica temporária que drena o líquido cerebral para baixo da pele do couro cabeludo até a cirurgia definitiva).

Questionado sobre o número de pacientes na fila de espera para o procedimento, a pasta não forneceu dados específicos, apenas destacou que busca integrar dados para aprimorar esse acompanhamento.

O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde

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