Notinhas fiscais, garrafas plásticas, latas de alimentos, brinquedos infantis. O BPA, ou bisfenol A, está em produtos que fazem parte da rotina de quase todo mundo. Esse composto químico é usado principalmente na fabricação de plásticos e resinas, mas também aparece no revestimento interno de embalagens, em utensílios domésticos e em materiais antichamas.
Mas o que preocupa pesquisadores e autoridades de saúde é que, apesar de tão difundido, o BPA é classificado como um desregulador endócrino: ou seja, uma substância capaz de interferir na produção e ação dos hormônios do nosso corpo, especialmente os sexuais.
“O principal foco de preocupação é o plástico, porque seu uso é massivo no mundo todo —estamos falando de toneladas por ano”, explica Elaine Costa, coordenadora da comissão de endocrinologia ambiental da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia).
“O bisfenol A é essencial na fabricação de muitos desses materiais. É como construir uma parede: o BPA seria o tijolo, e as ligações químicas, o cimento que mantém tudo unido. Quando você aquece um recipiente de plástico com alimentos, essas ligações podem se romper, liberando o bisfenol no alimento. Essa é a principal forma de contaminação. E o problema não para aí: esse plástico descartado acaba nos rios e também contamina a água.”
No caso do papel térmico, como as notinhas fiscais, o BPA pode ser absorvido pela pele —especialmente em quem manuseia esse tipo de material com frequência, como trabalhadores do comércio.
Embora a absorção seja considerada pequena, estudos apontam que a exposição constante, mesmo em doses baixas, pode trazer riscos a longo prazo. E não só para quem tem contato direto com a substância: segundo Costa, há indícios de que os efeitos podem ser transmitidos às próximas gerações, por meio de alterações epigenéticas.
Riscos causados pelo BPA: o que a ciência mostra
Não há dúvidas de que o bisfenol A não é completamente inofensivo —mas a ciência ainda não consegue determinar com precisão qual nível de exposição representa um risco concreto para a saúde humana.
“Em humanos, não conseguimos comprovar diretamente os riscos. Não dá para fazer um estudo dividindo as pessoas entre expostas e não expostas, seria antiético”, diz a endocrinologista Elaine Costa. “O que temos são estudos epidemiológicos que mostram que populações mais expostas desenvolvem algumas patologias. Em animais, já estão comprovados alterações de fertilidade, obesidade, diabetes.“
Esses efeitos se explicam, em parte, pela própria estrutura química do BPA, muito semelhante à do estradiol —o principal hormônio sexual feminino. Por isso, ele consegue se ligar aos mesmos receptores no corpo, interferindo na ação dos hormônios naturais. “É como se fosse uma chave falsa que entra na fechadura errada, impedindo que a verdadeira funcione”, compara Costa. Além dos hormônios sexuais, o bisfenol também afeta outros mecanismos celulares, com impacto potencial sobre a tireoide, o metabolismo e o sistema reprodutivo como um todo.
A professora Márcia Mendonça, titular de ginecologia da UFMG, aponta que compostos como o BPA podem exercer ação estrogênica ou antiestrogênica, interferindo no delicado equilíbrio do sistema hormonal. Estudos com animais já apontam efeitos deletérios, e evidências reunidas em diversos países mostram que a exposição a esses compostos está relacionada à redução da qualidade do esperma, maior incidência de anomalias genitais em homens, alterações no ciclo menstrual, síndrome dos ovários policísticos, endometriose e até alguns tipos de câncer.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) reconhece cerca de 800 compostos químicos suspeitos de interferir no sistema hormonal, entre eles o BPA. No entanto, ressalta que apenas uma pequena fração foi de fato estudada com profundidade e que a escassez de dados gera “incertezas sobre a extensão dos riscos”.
A própria Anvisa reconhece esse cenário de incerteza. De acordo com a agência, estudos de toxicidade convencionais só apontam efeitos em doses elevadas. No entanto, alguns poucos estudos sugerem que doses mais baixas de BPA também podem estar associadas a desfechos emergentes, como alterações no desenvolvimento neurológico, mudanças nas glândulas mamárias e próstata de ratos, além de prejuízos à qualidade do esperma. Como ainda há dúvidas sobre a validade e relevância desses achados, os especialistas alertam que, embora os dados não sejam conclusivos, eles devem orientar novas pesquisas e políticas de precaução.
“Eu costumo dizer que ausência de evidência não é evidência de ausência. Então, se a gente sabe que pode provocar, a gente precisa prevenir”, defende Elaine Costa.
Como se proteger do BPA no dia a dia
Apesar de ainda não existirem políticas rígidas de controle, algumas atitudes podem ajudar a reduzir a exposição ao bisfenol A (BPA) e a outros compostos semelhantes —como o BPS (bisfenol S, uma substância química usada como substituto do BPA, mas com efeitos hormonais similares).
A endocrinologista Elaine Costa explica que já é possível detectar a presença dessas substâncias no corpo, por meio de exames de urina, saliva e outros líquidos corporais, mas esses testes são restritos a laboratórios de pesquisa por dependerem de equipamentos de alto custo, como a espectrometria de massa.
Para ela, o cenário ideal seria uma legislação mais rígida, com controle rigoroso da exposição humana. “Acredito que o limite de migração para alimentos deveria ser zero, porque já estamos expostos a diversos desreguladores endócrinos no ar, na água, na comida, no papel, nos objetos de casa”, afirma.
Ela também defende mais pesquisas para desenvolver plásticos realmente seguros para a saúde humana.
No dia a dia, algumas medidas podem ajudar. A principal orientação é evitar o uso de plásticos para armazenar ou aquecer alimentos e dar preferência a recipientes de vidro. Também é importante observar se brinquedos e utensílios infantis têm o selo “bisfenol free”.
No entanto, é preciso cautela. “O bisfenol A costuma ser substituído por variantes como o bisfenol S ou F, que também têm atividade semelhante. Não é idêntica, mas é semelhante. Então não dá para dizer que o ‘bisfenol A free’ é totalmente seguro”, alerta a médica.
Ela recomenda ainda evitar alimentos enlatados, já que o revestimento interno das latas costuma conter bisfenol, e alimentos ácidos, como extrato de tomate, podem acelerar a liberação da substância. “O que podemos fazer é minimizar a exposição o máximo possível”, conclui.
Este texto foi originalmente publicado aqui.