“Há dez anos, eram 3.000 crianças com a SZC [Síndrome Congênita do Zika]. Metade já morreu. No mês passado, mais uma faleceu. Eram 1.589, agora são 1.588. São vidas perdidas por falta de apoio. As mães já se sentiram abandonadas há dez anos e continuam se sentindo hoje.”
O desabafo é da senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), autora de projeto de lei (enquanto deputada federal) que previa indenização e pensão mensal e vitalícia às crianças com síndrome, aprovado pela Câmara. Em janeiro, o presidente Lula publicou medida provisória que estabeleceu o pagamento de R$ 60 mil a cada família de crianças com a SCZ, mas vetou o pagamento de pensão vitalícia.
Desde então, famílias e crianças com a síndrome têm visitado os gabinetes de deputados e senadores como forma de sensibilizá-los a colocar em votação a derrubada do veto presidencial.
Segundo Gabrilli, já existe maioria para derrubar o veto na Câmara. “Há um grande apoio da bancada feminina, tem a pressão das associações, estamos articulando apoio na base e na oposição também no Senado.”
De acordo com a Secretaria de Comunicação da Presidência, o veto à pensão baseia-se na “observância às normas de responsabilidade fiscal e orçamentária, uma vez que a proposição legislativa cria despesas obrigatórias de caráter continuado e benefícios tributários sem apresentar a estimativa de impacto financeiro ou a indicação de fonte de custeio”.
Na opinião de Gabrilli, porém, o veto presidencial é injustificável porque o projeto foi apresentado já com a previsão de impacto orçamentário e de análise sobre a fonte de custeio.
Segundo a senadora, dez anos após o início da epidemia de zika, ainda persiste um silêncio ensurdecedor do Estado brasileiro. “Essas mães enfrentam uma rotina de exaustão física, emocional, financeira.”
“O Estado falhou no controle do saneamento básico, falhou no controle do vetor [o mosquito aedes], o que resultou na maior tragédia sanitária da década. E essas famílias não contam com nada. A pensão não é luxo. É necessidade vital.”
Gabrilli lembra que as crianças não têm apenas uma deficiência física. “Além de convulsões frequentes, de terem desenvolvido epilepsia, todas têm deficiência física, intelectual, auditiva e visual.”
A ginecologista e obstetra Adriana Melo, a primeira pesquisadora a relacionar o vírus da zika com os casos de microcefalia, acompanha crianças com a síndrome desde 2015. “O que é uma indenização de R$ 60 mil para crianças com tantas demandas?”, questiona.
Segundo ela, a maioria das crianças tem deficiências motoras muito graves. “Elas não se alimentam normalmente, muitas só comem comida pastosa e são dependentes do leite ainda. A maioria não fala, mas se comunica com sorriso”, conta.
A médica diz que há um grupo de crianças que teve a cognição preservada, mas não consegue andar. “É como se eles tivessem uma fragilidade muscular muito grande, não sustentam a marcha.”
Para Melo, ainda hoje há muitas lacunas no entendimento da doença que ficaram sem respostas por falta de investimentos em pesquisas. “A gente ficou muito nos casos visíveis, de microcefalia, mas temos muitas crianças que podem ter sido afetadas e não foram diagnosticadas”, afirma a médica.
Ela afirma que acompanha crianças nascidas na época que têm atrasos no desenvolvimento e hiperatividade, por exemplo. “Se a gente fizesse hoje uma pesquisa em crianças com 10 anos e aplicasse um teste de desenvolvimento neuropsicomotor, a gente ia ver muito atraso entre as que foram expostas ao vírus.”
Se a gente fizesse hoje uma pesquisa em crianças com 10 anos e aplicasse um teste de desenvolvimento neuropsicomotor, a gente ia ver muito atraso entre as que foram expostas ao vírus
Adriana preside o Instituto Paraibano de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto (Ipesq), um centro de referência em atendimentos à crianças com microcefalia, localizado em Campina Grande (PB). Segundo a pesquisadora, hoje são atendidas cerca de 200 crianças no local.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que acompanha de forma permanente os avanços científicos sobre a Síndrome Congênita do Zika e que implementa ações integradas de prevenção, vigilância, assistência e pesquisa, com foco na melhoria do cuidado às crianças afetadas e suas famílias.
“Nos últimos dez anos, o Brasil se consolidou como referência mundial em estudos sobre a SCZV, contribuindo com o maior volume de dados científicos à Organização Mundial da Saúde (OMS). O Ministério financia pesquisas, atualiza protocolos e reforça a rede de atendimento por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).”
Falta integração de dados de mortes de crianças com a SCZ
Os dados absolutos de mortalidade das crianças com SCZ ainda não são claros. Para concluir que metade das crianças com a síndrome morreu em dez anos, Mara Gabrilli considerou 3.308 crianças diagnosticadas com a SCZ seguidas até os três anos pelos pesquisadores da Fiocruz Brasil e aquelas que morreram, segundo as associações de mães. O Ministério da Saúde não informou quantas mortes de crianças com a síndrome ocorreram desde 2015.
Segundo pesquisadores, os dados do ministério sobre mortes por SCZ são baseados em um sistema de informação criado na época da epidemia de zika, que está desatualizado e não é integrado ao SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade) em tempo real.
O Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), da Fiocruz Bahia, tem feito esse papel de reunir informações de nascimento e de mortalidade dessas crianças, mas só trabalha com dados relativos e não absolutos.
“Existe muito erro de ‘linkagem’, até do próprio preenchimento, ou seja, há uma qualidade bem heterogênea do registro. Por isso, os dados relativos são mais seguros. O fato de não ter esses dados absolutos tão precisos mostra que houve uma certa negligência na contagem e no acompanhamento dessas crianças”, diz o pesquisador João Guilherme Tedde, da Fiocruz Bahia.