Em uma reunião de trabalho, a médica oncologista Joana terminou de fazer uma argumentação contrária ao fechamento de um contrato que, ela argumentava, iria resultar em pior tratamento para os pacientes do hospital onde ela ocupava uma posição de liderança.
“Eu levei muitos dados, números e, quando terminei, ouvi que deveria fazer uma apresentação menos emotiva”, conta a médica, que não se chama Joana, mas prefere não se identificar por medo de sofrer represálias dentro do trabalho.
Em outra reunião, foi interrompida grosseiramente ao tentar expressar uma opinião divergente em uma sala de maioria masculina. “Essas são apenas algumas situações que eu passei ao longo da minha carreira, e acredito que seja sim por eu ser mulher“, diz.
Um estudo da Sboc (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica) publicado na revista científica americana Global Oncology, em abril, aponta que a experiência de Joana não é isolada. De acordo com os dados, 55,5% das mulheres oncologistas que responderam ao questionário disseram ter sofrido discriminação de gênero na profissão —entre os homens, 1,8% afirmaram a mesma coisa.
Além disso, outros dois números chamaram a atenção das pesquisadoras: 50% das respondentes afirmaram ter sofrido assédio moral no trabalho, e 24% reportaram assédio sexual. A quantidade de homens que afirmaram ter passado pelas mesmas violências foram 21% e 7%, respectivamente.
O estudo ouviu 146 mulheres e 56 homens entre os 2.125 membros da Sboc, em um questionário enviado por email. As pesquisadoras fazem uma ressalva em relação à amostragem, que é de cerca de 10% do total, e com adesão menor de homens. Mas afirmam que estudos feitos com questionários costumam ter amostragens menores, e que os resultados são um ponto de partida interessante para novas pesquisas.
“E também, infelizmente, a gente observa uma certa recusa ou uma certa dificuldade de se abordar esse tema tanto para homens quanto para mulheres”, afirma Daniele Assad Suzuki, que coordenou a pesquisa.
Ela diz que a ideia de pesquisar a igualdade de gênero no campo da oncologia surgiu a partir da percepção de que outros países estavam começando a medir as dificuldades para mulheres na medicina. “E o que nos causou até uma certa perplexidade foram os resultados de assédio moral e sexual”, diz Suzuki.
O estudo aponta que a predominância de homens em posições de liderança na área da oncologia pode ser um fator para que haja mais dificuldade para mulheres reportarem e se protegerem de violências dentro do ambiente de trabalho. Além disso, a pesquisa afirma que os dados apontam para uma necessidade de maior treinamento e atualização de residências e da formação médica, para incluir treinamentos sobre gênero, por exemplo.
As médicas também relataram um nível maior de dificuldade para conciliar a carreira com os filhos, com 33% relatando essa questão como sua principal barreira profissional, contra 28% dos homens.
Em relação à discriminação de gênero, Suzuki relata experiências pessoais. “Já aconteceu inúmeras vezes comigo de acharem que eu não era a médica, perguntarem ‘quando que a doutora vai chegar?’”, diz ela. “Também já me confundiram com residente quando eu era a chefe, e ficaram conversando com o residente homem, porque como assim eu poderia ser chefe dele?”, conta.
A presidente da Sboc, Angélica Nogueira, afirma que a sociedade deve organizar ações a partir dos dados e que espera que o estudo possa ser replicado por outras sociedades médicas para ampliar o acesso a dados sobre gênero e medicina no Brasil.
“Queremos ampliar o espaço para mulheres na liderança na área médica, então produzimos um manual sobre isso, estamos preparando workshops, e também em contato com outras sociedades para podermos trabalhar em conjunto”, afirma Nogueira.
No caso da médica Joana, que foi chamada de emotiva por colegas homens, a persistência deu resultado. “Eu juntei muitas provas, insisti muito e consegui derrubar o contrato que seria ruim para os pacientes. Mas a que custo para mim, né?”