Fazer qualquer atividade diariamente por mais de um ano já exige bastante disciplina —imagine passar algumas horas todos os dias se dedicando a um hobby: pintando, cuidando de plantas, tricotando… Sem falhar um só dia.
Para Hugo Farias, o objetivo era ainda mais ousado: percorrer 42,195 quilômetros —uma maratona inteira, por 366 dias.
Hoje com 43 anos, Hugo trabalhou 22 deles no setor privado, como gestor executivo de grandes contratos de operações tecnológicas. A decisão de pedir demissão e focar sua vida em um desafio esportivo surgiu de um incômodo que foi crescendo aos poucos.
“Chegou um momento em que eu parei e pensei: será que eu vim ao mundo só pra isso? Pra repetir essa rotina por 35, 40 anos? E se for, tudo bem. A gente aprende desde cedo: escolher uma carreira antes dos 18, se especializar, entrar no mercado, buscar estabilidade, construir família, se preparar para aposentadoria. Mas eu comecei a sentir que podia fazer algo mais. Inspirar pessoas de uma forma diferente. Mas… o quê?”
“Sempre fui muito fã do Amir Klink —o navegador brasileiro que cruzou o Atlântico Sul remando, em 1984. Eu pensei: Tá aí. Acho que posso modelar essa jornada do Amir. Só que, em vez de navegar… eu vou correr.”
Hugo queria deixar uma marca, e por isso, buscava um feito inédito. Descobriu que um atleta belga, Stephen Engels, já havia corrido 365 maratonas em um ano – e assim decidiu criar um plano com um dia a mais.
“E olha: eu não era nenhum grande atleta. Tinha corrido só uma maratona na vida. Comecei a correr em 2019, meu histórico era recente. Mas a vontade de escrever uma nova histórias, de causar impacto através do esporte… Só crescia dentro de mim.”
Hugo começou a desenhar um plano que exigia uma organização minuciosa por oito meses – envolvendo logística, treinamento, apoio da família e de vários profissionais.
“Sabia que não conseguiria sozinho. Montei uma equipe multidisciplinar: médicos, profissionais do esporte como treinador, fisioterapeuta, além de psicóloga… Convidei diferentes figuras para o projeto, e uma delas foi o Instituto do Coração, o InCor.”
“Perguntei se eles poderiam me acompanhar, ver como meu coração reagiria a esse esforço: se ia aumentar, diminuir, desenvolver arritmias, alguma adaptação… Queria também gerar alguma contribuição científica – e felizmente o InCor topou.”
Hugo completou o desafio em 28 de agosto de 2023. Foram cerca de 1590 horas percorrendo os 15.569 quilômetros totais – um feito que o colocou no Guinness World Records como o recordista mundial de maratonas consecutivas.
O que o estudo mostrou sobre o coração de Hugo após 366 maratonas
Maria Janieire Alves, cardiologista e pesquisadora envolvida no estudo, conta que o acompanhamento do atleta virou projeto de pesquisa, passando por um comitê de ética.
“É a forma correta e segura de conduzir algo assim, ainda mais se tratando de um projeto inovador, algo que ninguém havia feito, e que poderia ter impacto relevante no coração.”
O processo teve início com uma avaliação nos moldes da pré-participação esportiva. “Estabelecemos limites baseados principalmente no volume, e não na intensidade, para que ele conseguisse completar o desafio sem risco cardiovascular. Ao longo de todo o percurso, monitoramos marcadores sanguíneos de dano miocárdico, realizamos ecocardiogramas e testes cardiopulmonares”, afirma Alves.
Hugo passou por avaliações mensais com ergoespirometria (teste de esforço que mede o consumo de oxigênio e a capacidade cardiorrespiratória) e, a cada três meses, realizou ecocardiogramas (exame de imagem que avalia a estrutura e o funcionamento do coração). “A ideia era acompanhar as adaptações cardíacas —tanto em larga escala quanto em nível microscópico— e observar possíveis sinais de desarranjo, adaptação ou desadaptação ao treinamento físico.”
Os resultados foram publicados na revista científica Arquivos Brasileiros de Cardiologia.
Segundo a médica, as conclusões mostram que apesar da frequência e do volume do exercício, não houve alteração nos marcadores de troponina, que indicam dano miocárdico.
“Foi a principal descoberta do estudo. É possível adaptar o coração a uma carga atlética de grande volume, desde que a intensidade seja moderada.”
O cardiologista esportivo Filippo Savioli – que não fez parte do estudo ou acompanhou Hugo profissionalmente – avalia que, no estudo, o achado mais notável reside na ausência de remodelamento cardíaco patológico (mudanças anormais na estrutura do coração, geralmente causadas por esforço excessivo ou doenças), mesmo após 366 maratonas consecutivas – uma carga sem precedentes em termos de volume e frequência.
Ele ressalta que os resultados indicam adaptação cardiovascular (ajustes do sistema circulatório ao esforço) foi predominantemente fisiológica (natural e saudável, e não indicativa de doença).
“Isso reforça a ideia de que o coração do atleta treinado pode tolerar estresses extremos, desde que dentro de uma faixa de intensidade segura e com adequada recuperação entre sessões.”
O cardiologista explica que Hugo correu em intensidade moderada, com frequência cardíaca média de 140 bpm – cerca de 70 a 80% da frequência máxima estimada para a sua idade. “Isso o manteve numa zona segura de esforço, onde o corpo ainda consegue equilibrar bem o uso de oxigênio e a produção de energia.”
Segundo Savioli, “correr nessa faixa reduz o risco de danos ao coração, como inflamações, cicatrizes ou arritmias”, mesmo com tanto volume. Ele ressalta que, se Hugo tivesse feito o desafio em alta intensidade, os efeitos poderiam ser negativos: “Exercícios intensos por muito tempo aumentam o risco de fibrose no coração e arritmias.”
Hugo considera surpreendente a adaptação de seu corpo ao esforço físico. E perceber que “Claro que trata-se de um relato científico, apenas – eu sou um entre bilhões. Mas eu acho que isso traz bastante informação sobre a capacidade do corpo humano, principalmente você se conhecer melhor. Eu adquiri um condicionamento que eu jamais imaginei que eu teria na vida. E ver que não teve nenhuma sequela foi importantíssimo.”
Mas o cardiologista Filippo Savioli alerta que tentar algo parecido sem adaptação e acompanhamento médico é perigoso. “O risco é considerável e desaconselhado”, diz. Sem preparo, há chances reais de lesões graves, como arritmias, inflamações ou até morte súbita.
366 maratonas: o preparo do corpo e mente
Casado e pai de dois filhos, Hugo conta que escolheu começar o trajeto sempre pela manhã para ter tempo de ficar com a família e realizar os cuidados de recuperação ou fortalecimento muscular no restante do dia.
Ele fez a maioria das maratonas na mesma rota na cidade de Americana, no interior de São Paulo.
“Eu decidi fazer sempre o mesmo trajeto por alguns motivos. Primeiro: minha cabeça já sabia o que vinha pela frente. Eu conhecia cada subida, cada curva. Segundo: os pontos de parada e hidratação. Ao longo de um ano, você precisa parar – para ir ao banheiro, pegar mais água… E o terceiro motivo, pra mim, foi o mais importante: acessibilidade. Queria inspirar pessoas, e que elas soubessem quando e onde me encontrar. Ao longo dessa jornada, mais de 5 mil pessoas correram comigo.”
Hugo conta ter feito uma análise de riscos: “Eu poderia me lesionar? Sim. Ser atropelado? Sim. Ter algum problema familiar? Sim. Mapeei tudo isso, e tracei um plano de ação para cada cenário”
“Enfrentei de tudo: frio, calor, chuva, trânsito, caminhão passando muito perto… Lesões, três quadros de diarreia – o pior durou cinco dias. Nesse período, perdi 4kg. Foi preciso ajustar alimentação, hidratação. Mas seguimos.”
Hugo também enfrentou algumas lesões ao longo do ano. Teve uma fasceíte plantar – uma inflamação dolorosa na sola do pé, comum em quem corre longas distâncias – por volta da maratona de número 120. Depois, por volta da maratona 140, desenvolveu uma pubalgia, uma lesão na região da virilha que afeta tendões e músculos do abdômen inferior e da parte interna da coxa.
“A pubalgia foi uma das piores fases. Uma lesão muito dolorosa. Mas como eu não podia parar, fiz recuperação ativa: caminhei 10 horas por dia durante cinco dias, segurando uma sacola com gelo na virilha. Depois fui voltando aos poucos: caminhar, trotar… até conseguir correr os 42 km de novo.”
O acompanhamento psicológico também fez parte da rotina.
“Eu troquei uma carreira consolidada por algo totalmente incerto. E claro que isso gera ansiedade, insegurança. Então ter uma profissional com esse olhar independente foi importante para aliviar o peso e manter o foco.”
Dois anos após concluir o projeto, Hugo escreveu um livro sobre a experiência – ‘Nunca é Tarde Para Escrever Uma Nova História’ -, correu outras maratonas e ultramaratonas, e agora planeja seu próximo desafio: ser o primeiro humano a correr toda a extensão das Américas, de Prudhoe Bay, no Alasca, até Ushuaia, na Terra do Fogo.
“A ideia é fazer isso em dez meses, trezentos dias —o que dá, em média, 85 quilômetros por dia.”
Ele também quer transformar a jornada em um documentário para inspirar futuras gerações, mas ainda busca recursos para montar uma equipe de filmagem e um motorhome equipado.
“O objetivo é gerar uma grande conscientização global sobre os benefícios da atividade física e de que o ser humano é capaz de coisas incríveis. Ninguém precisa correr uma maratona por dia, mas cada um precisa acreditar de verdade em seu potencial.”