Página Inicial Saúde O que aprendei em ‘cafés da morte’ em Londres – 04/08/2025 – Equilíbrio

O que aprendei em ‘cafés da morte’ em Londres – 04/08/2025 – Equilíbrio

Publicado pela Redação

Pessoas passam despreocupadas, com roupas de banho e toucas de pano, a caminho de uma sauna, enquanto ouço um homem contar como foi despedir-se de um companheiro de longa data, que sofria de uma doença incurável.

Em outro dia, um grupo reunido numa funerária, ao lado de uma sala cheia de caixões coloridos e do próprio necrotério que guarda os corpos das pessoas que acabaram de morrer, fala sobre o legado que deixamos quando nossa vida chega ao fim.

Num centro comunitário, em outra parte da cidade, uma senhora se preocupa sobre quem vai limpar o corpo dela imediatamente após a morte, enquanto dois jovens refletem sobre religiosidade e os desejos não atendidos daqueles que partiram.

Essas foram algumas das cenas que testemunhei entre o final de junho e o início de julho, quando decidi participar de alguns “cafés da morte” organizados em diversas localidades de Londres, no Reino Unido.

Eu nunca tinha ouvido falar sobre esse tipo de evento até recentemente, quando li um artigo sobre o tema publicado no jornal britânico The Guardian.

Conhecidos em inglês como death cafes, esses espaços de discussão sobre a finitude da vida começaram a ganhar forma a partir de 2011, pela iniciativa de Jon Underwood e Sue Barsky Reid.

Inspirados pelo trabalho do sociólogo suíço Bernard Crettaz, que discute a finitude da vida em alguns escritos, eles foram pioneiros ao organizar o primeiro evento do tipo no bairro de Hackney, no leste de Londres.

Desde então, esses cafés se espalharam pela capital do Reino Unido e pelo mundo, com o objetivo de, nas palavras dos fundadores, “aumentar a conscientização sobre a morte como uma maneira de ajudar as pessoas a tirar o máximo de suas vidas finitas”.

Em alguns lugares, eles acontecem de forma regular, uma vez ao mês ou todas as semanas.

Embora a dinâmica seja bem variada, essas ocasiões partem de algumas premissas básicas.

Primeiro, elas são organizadas de forma voluntária e não cobram valores dos participantes.

Segundo, elas não pretendem prestar o serviço de grupos de suporte emocional e psicológico a pessoas enlutadas, que acabaram de perder alguém querido. Os organizadores sempre reforçam a importância desses indivíduos buscarem ajuda específica para essas situações.

Terceiro, embora o tema seja a morte, não há uma agenda específica a ser seguida. Todos os interessados devem ter a mente aberta para perspectivas, ideias e visões de mundo diferentes das suas.

Quarto, e não menos importante: as conversas são acompanhadas por uma boa xícara de café ou chá (já que estamos no Reino Unido) e, por que não, uma fatia de bolo.

E, embora em todos os cafés eu tenha me apresentado como jornalista de saúde e ciência, decidi adotar uma quinta e última regra para escrever essa reportagem: em respeito à confidencialidade dos demais participantes, que não estavam ali para dar entrevistas, não vou identificá-los, nem entrar em detalhes específicos das histórias que eles contaram.

A ideia, como você vai conferir ao longo do texto, é apresentar observações e aprendizados que tive nos instigantes cafés da morte que pude participar.

A morte é poética —e cheia de burocracias

Os primeiros pontos que me impressionaram ao conversar com pessoas de todos os cantos do mundo foram as diferentes formas de enxergar a morte e o que ela pode representar.

Para alguns, há um medo imediato com as questões práticas desse marco da vida (ou do fim dela).

Muitos diziam-se preocupados com a papelada, o preço do funeral ou do enterro, as senhas das contas bancárias, do e-mail e das redes sociais.

Outros refletiram sobre qual seria o destino dos objetos de afeto e memória, como fotografias ou diários.

Uma das pessoas contou que deseja contratar alguém para limpar seu corpo logo após o óbito —experiências anteriores revelaram que, nesse momento, o organismo pode liberar uma série de fluidos que chocam o observador daquela partida.

Mas uma outra parcela dos participantes se mostrou mais interessada nas questões metafóricas e filosóficas relacionadas ao fim.

O que há depois da morte? Para onde vamos? Temos alma?

Também chamou a minha atenção a preocupação das pessoas com o legado e as marcas que elas deixam pelo mundo.

Um indivíduo, que lida com uma perda particularmente dolorosa, passou a se dedicar a apoiar projetos solidários que unem diferentes comunidades, etnias e religiões. Em nome do parente que partiu.

Outro, cuja mãe faleceu recentemente e não tem parceiros ou filhos, refletiu sobre a falta de vínculos verdadeiros —e sobre quem realmente sentiria falta dele no momento em que ele não estiver mais aqui.

Mas há também aqueles que são estoicos, quase cínicos, ao lembrarem que, num universo de 13,8 bilhões de anos, as poucas décadas da vida de um indivíduo representam apenas uma gota de um vasto oceano.

A morte tem múltiplas faces

Também achei muito curioso observar como os ritos ligados à morte são tão variados ao redor do mundo.

Logo de cara, me surpreendi com o fato de que no Reino Unido as pessoas podem demorar dias, semanas ou até um mês para serem enterradas.

A data é definida apenas depois que todas as burocracias são resolvidas. Na cerimônia de despedida, família e amigos se reúnem para prestar as últimas homenagens, inclusive com a leitura de cartas e depoimentos.

Não tinha ideia de que, em algumas partes do Sudeste Asiático, as pessoas podem construir tumbas em qualquer lugar, sem a necessidade de concentrar jazigos e ossários em cemitérios.

Em outros lugares da Ásia, os corpos são enrolados em panos e enterrados bem próximos, ou até em cima, de seus entes queridos que também já se foram.

Conheci detalhes sobre cerimônias taoístas feitas em Singapura —e sobre como a profissão de oradores ou mestres de cerimônias para funerais de animais de estimação está em alta na Austrália.

Há ainda uma sutileza na forma como a morte integra a vida (e vice-versa). Pessoas que seguem religiões como o hinduísmo e o budismo destacaram como o morrer faz parte das cerimônias e até do dia a dia delas.

A experiência de morte nunca se repete —e não é possível medir a dor de alguém

Durante os cafés, o contato com tantas histórias tristes, de tragédias pessoais e perdas irreparáveis, irremediavelmente desembocava numa discussão infrutífera e igualmente instigante.

O que será melhor: morrer de forma súbita e inesperada ou perecer depois de longos meses ou anos de declínio?

Sempre apareciam argumentos válidos para os dois cenários.

Aqueles que precisaram cuidar de um amigo ou familiar por períodos prolongados defendiam que uma partida rápida gera menos desgaste e sofrimento para quem vê o apagar físico e mental de alguém amado, dia após dia.

Já o grupo que viu um ente querido morrer sem qualquer aviso prévio sente falta justamente dessa previsibilidade, da oportunidade de se despedir e dizer aquelas últimas coisas que são tão importantes.

Obviamente nenhum dos cenários tem algo de agradável —e a única conclusão que cheguei a partir das observações nos cafés é que a experiência de morte dificilmente se repete.

Ela é diferente para todas as pessoas porque envolve uma série de variáveis, como a relação que você tinha com aquele que se foi, seu modo de lidar com as perdas, vivências anteriores, suporte social.

Entender isso é fundamental não apenas para respeitar a dor alheia, mas também para observar a si mesmo e entender a sua própria relação com a morte.

Em todas as ocasiões, as pessoas me perguntavam o que eu fazia ali e qual era meu interesse em acompanhar esses cafés.

Respondi que, como jornalista que escreve sobre saúde e ciência, minha motivação principal sempre foi trazer informações e orientações validadas cientificamente para que as pessoas possam viver mais e melhor.

No entanto, por mais que os avanços da medicina tenham permitido esticar cada vez mais a corda da expectativa de vida, há um limite óbvio para isso: a morte.

Refletir sobre essa dualidade e as nossas limitações diante da única certeza que temos é algo que sempre me deu um certo fascínio.

E isso ficou ainda mais escancarado nos últimos anos, durante a pandemia de covid-19, na qual trabalhei de forma diária e exclusiva por quase três anos.

Acompanhar de perto o número de casos e mortes subir —especialmente num momento em que já tínhamos vacinas à disposição— representava uma fonte contínua de aflição e um lembrete diário sobre a finitude de nossas existências.

Precisamos falar mais sobre a morte

Em linhas gerais, a experiência nos cafés da morte me mostrou como somos terríveis em falar sobre o fim da vida.

Existe uma espécie de trava cultural que faz as palavras simplesmente sumirem na hora que esse assunto surge.

Em algumas culturas, inclusive no Brasil, debater sobre a morte chega a ser até desencorajado, em razão de superstições e ideias falsas de que o simples fato de usar essa palavra traz má sorte ou atrai coisas ruins.

De certa maneira, isso também é influenciado pela forma como lidamos com essas perdas nos dias de hoje: o morrer meio que “desapareceu” de nossas vistas.

Na maioria das vezes, esse processo acontece nos ambientes assépticos dos hospitais, bem longe de casa e da família, em ambulatórios ou unidades de terapia intensiva (UTI).

Nos últimos anos, um movimento contrário, liderado por especialistas em cuidados paliativos, tenta reverter esse cenário e tirar os tabus que rondam o fim da vida.

Há também uma tentativa de conscientizar as pessoas sobre questões práticas e burocráticas, como estabelecer diretivas antecipadas de vontade —como você quer ser tratado nos momentos finais da vida e logo depois de morrer— e organizar questões financeiras ou de herança.

Antes de participar de qualquer café da morte, tinha uma expectativa de que esses eventos seriam emocionalmente muito pesados, marcados por choros, soluços e lamentações.

Mas, para a minha própria surpresa, nas três ocasiões em que me engajei em atividades do tipo, a sensação que tive ao final dos eventos era de uma estranha leveza.

Fiquei curioso para saber se isso era uma experiência individual ou coletiva.

Para entender isso, conversei com a professora Marysia De Carlo, que dá aulas na Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto e já organizou mais de 30 cafés da morte no interior paulista.

“As pessoas acham que o café da morte vai ser um lugar para chorar, mas essa não é a realidade. É um ambiente que a gente ri”, concorda ela.

“Sempre que termino um café da morte, fico cansada por todo o envolvimento emocional, mas também sinto uma leveza”, complementa a especialista, organizadora do livro “Reabilitação Paliativa” (Grupo Editorial Summus).

Na minha própria experiência, é como se, ao falar sobre a morte no meio de estranhos, a gente tirasse um peso oculto sobre nossos ombros e —sem medo de ser piegas— passasse a valorizar mais os detalhes da vida.

Em mais de uma ocasião, evoquei minhas raízes brasileiras para traduzir aos meus colegas de café uma estrofe de Gilberto Gil: “Não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer.”

Talvez os cafés da morte sirvam justamente para isso: nos lembrar que o morrer e a morte são parte integral da vida e existem caminhos para falar sobre isso. Longe de medos, afastado de tabus.

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