Para Ash Pérez, produtor, escritor e criador de conteúdo de 35 anos, mergulhar na masculinidade foi como viajar por um país desconhecido, com uma cultura e idioma diferentes.
Em 2020, depois de viver abertamente como uma pessoa queer e bissexual desde os 23 anos, ele começou sua transição física para ser um homem trans.
Ash abraçou sua identidade depois de perder o pai durante a pandemia de Covid-19. Apesar de seu pai aceitar sua diversidade sexual e de gênero, ele conta que deixar de ser “a menina do papai” foi algo complicado.
“Essa foi uma das razões pelas quais eu não transicionei antes, não queria que meu pai ficasse decepcionado. Quando ele faleceu, vi a liberdade de explorar meu gênero” explica.
Contudo, com a morte do pai, Ash perdeu a única referência masculina que tinha. E, em plena transição, percebeu que precisava de apoio para entrar em uma realidade que desconhecia.
“Não acreditava que eu sabia tão pouco sobre masculinidade e os homens em geral, me sentia como um extraterrestre aprendendo outro idioma”, contou em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
Ash estava enfrentando um dos desafios sociais comuns às pessoas trans, que variam de acordo com o contexto individual e, em alguns casos, se entrelaçam com desafios físicos ligados à terapia hormonal.
Embora o procedimento seja seguro, de acordo com instituições médicas como a Clínica Mayo, a terapia hormonal envolve riscos, como a possibilidade de causar algumas doenças.
No meio desse processo, Ash decidiu recorrer a ferramentas que sempre o ajudaram a passar por dificuldades: o riso e a escrita.
Após conversar com um ex-colega do BuzzFeed, ele criou uma série de vídeos humorísticos em que passava por situações cotidianas junto com outros homens.
Na produção, que chamou de New Guy Tries, e que teve duas temporadas transmitidas pela plataforma de streaming 2nd Try, ele faz coisas como visitar pela primeira vez uma barbearia ou jogar pôquer com um grupo de amigos.
No programa, ele conta que descobriu que muitas das ideias preconcebidas que tinha sobre a masculinidade não eram totalmente verdadeiras e que, inclusive, essas crenças socialmente adquiridas podem causar um dano profundo nos homens, como especialistas já alertaram.
Mas a revelação que ele considera mais importante é que encontrou facetas positivas na masculinidade, depois de sentir desconfiança e medo em relação a ela durante anos por ouvir que era “tóxica” e “nociva”.
Aprender a jogar
Um dos aspectos positivos que ele descobriu enquanto gravava o programa foi o papel do jogo e do esporte.
Segundo ele, alguns homens usam essas atividades para compartilhar entre si suas emoções, preocupações ou momentos difíceis, mesmo que esse não seja o objetivo principal do encontro.
“No segundo episódio, quando fomos jogar pôquer, a conversa acabou ficando muito profunda. Terminamos falando sobre os medos que a paternidade traz, quão desprotegidos os homens se sentiam nessa fase e a preocupação que tinham em ser um apoio para suas parceiras”, conta.
“Às vezes, você pode estar assistindo a um jogo de futebol com seu tio, um amigo, e, no meio do comercial, fala algo como: ‘Sabe, perdi meu emprego’. Isso é diferente de como eu aprendi a me relacionar com os outros.”
Ele acrescenta que, nos 31 anos que se “socializou como mulher”, muitas vezes seus encontros com amigas eram focados apenas em conversar.
“Sempre tínhamos muita coisa para processar.”
E acredita que certos homens “têm uma habilidade incrível pra brincar, jogar e se divertir, algo que estamos perdendo.”
Aumentar o corpo
Ash diz que, após sua transição, começou a se exercitar como nunca.
Antes, ia à academia com a ideia de perder massa corporal e tinha medo de ganhar volume, porque, segundo os padrões de beleza que lhe ensinaram, era algo associado à masculinidade.
“Penso que muitas mulheres podem se beneficiar dos treinamentos de força, que vários estudos indicam serem benéficos para a saúde.”
E acrescenta: “Para os homens, ensinam a aumentar o corpo, enquanto para as mulheres, ensinam a diminui-lo”.
Ele também conta que aprendeu a ser aventureiro.
Na série, ele se anima a fazer algumas loucuras, como participar de uma competição em que arrastam caminhões com carros.
“Ser aventureiro é algo que aprendi como homem, porque enquanto eu crescia, me diziam que as mulheres são frágeis. E, de certa forma, por causa desse tipo de crença, não é possível identificar todos os benefícios que geralmente se associam à masculinidade”, aponta.
“No mundo em que vivemos, as mulheres às vezes não conseguem aproveitar esses benefícios. Mas, talvez, a nível individual, exista algo disso que elas possam incorporar enquanto mudanças maiores vão acontecendo.”
Falar sobre gênero
Como um “cavalo de Troia que ajudou seus amigos a refletir sobre seu gênero”, disse Ash, sobre como se sentiu na produção do New Guy Tries.
Nos programas, participaram homens que, durante anos, compartilharam várias fases da vida juntos. E foi nas discussões que tiveram durante a série que conheceram detalhes íntimos uns dos outros.
“Nas gravações, me diziam que desconheciam coisas tão básicas como o fato de que seus amigos tinham irmãos. Também como pensavam sobre certos temas, como a paternidade ou seus medos”, conta.
Segundo ele, a razão por trás disso é que não é comum espaços para conversar sobre a masculinidade e que muitos homens são ensinados, desde criança, a esconder suas emoções.
Ash, que hoje é influenciador nas redes sociais, reforça o que dizem especialistas e pesquisas científicas, que mostram que em alguns países como Estados Unidos e Reino Unido, os homens tendem a sofrer mais com a solidão.
Essa constante desconexão está associada um “maior risco de sofrer depressão e ansiedade”, de acordo com o Escritório do Cirurgião-Geral dos Estados Unidos.
Ash opina que, embora o sistema patriarcal beneficie os homens, eles também podem ser prejudicados pelos estereótipos e regras que esse sistema perpetua.
Diante da solidão, alguns recorrem a plataformas com fóruns de conversa online, que muitas vezes se transformam em focos de ideias radicais.
“Os homens são muito mais do que aquilo que vemos à primeira vista. Se não começarmos a abrir o diálogo e envolvê-los nas discussões sobre gênero, estamos apenas os isolando.”
Apesar de alguns governos ao redor do mundo impulsionarem uma narrativa adversa contra as pessoas trans —como acontece nos Estados Unidos com o governo de Donald Trump, que argumenta que gênero deve ser definido segundo o sexo da pessoa ao nascer—, Ash acredita que essa comunidade busca manter aberto o diálogo sobre os seres humanos diversos que somos.
“O que buscamos é expandir os limites do gênero”, afirma.
E garante: “Fazemos isso porque há muito mais liberdade quando se cruza para o outro lado.”