Parece um daqueles tocadores de áudio do início do século. Corpo de plástico preto, visor quadrado e teclinhas mecânicas na porção frontal inferior. Não é um MP4, mas um “pâncreas artificial” para pessoas com diabetes tipo 1.
O equipamento une bomba de insulina e sensor de glicose. Um código instalado na bomba capta leituras de glicemia enviadas a cada cinco minutos pelo sensor e aciona a infusora, que dispara microdoses de insulina no organismo do usuário.
Se a glicemia está aumentando, a bomba joga mais insulina no sangue. Se está abaixando perigosamente, interrompe de forma temporária o fluxo do hormônio. Também prepara o organismo para as próximas refeições, injetando insulina quando o usuário avisa que vai se alimentar.
Por agir de forma semelhante ao pâncreas, o equipamento mantém os níveis de açúcar dentro da meta e evita episódios de hipoglicemia ou hiperglicemia, além de eliminar as constantes picadas para medir glicemia e injetar insulina.
O preço é um entrave. O único aparelho vendido no Brasil custa R$ 20 mil, e os insumos mensais outros R$ 3.000. Em novembro do ano passado, porém, o Superior Tribunal de Justiça determinou que as operadoras de planos de saúde devem cobrir o fornecimento das bombas de insulina para beneficiários com necessidade comprovada.
Como o equipamento não foi incorporado pelo SUS (Sistema Único de Saúde), o paciente diabético sem plano de saúde tem poucas vias para obtê-lo. No estado de São Paulo, uma delas é o caminho dos centros referenciados, como o Ambulatório de Bomba de Insulina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O SUS encaminha para lá pacientes mais suscetíveis a crises de hipoglicemia e crianças diabéticas, e o ambulatório abre um pedido junto à secretaria estadual de saúde, com quem tem convênio, para que recebam o sistema automático de administração de insulina.
Médicos, nutricionistas, educadores físicos, enfermeiros e psicólogos do ambulatório monitoram 258 pacientes com bomba de insulina. Destes, cerca de 60 fazem uso do pâncreas artificial, relata Mônica Gabbay, professora da Unifesp e coordenadora do ambulatório. Ela usa o termo “sistema de alça fechado híbrido” e diz que o pâncreas artificial de verdade ainda não existe, porque nos aparelhos disponíveis hoje o diabético ainda tem que informar quantos carboidratos consumirá.
“É uma busca para que o paciente tenha menos encargo no dia a dia, porque a rotina de quem tem diabetes é 24 por 7”, afirma a professora. Diabéticos tipo 1 sob tratamento convencional precisam medir o nível de açúcar no sangue antes e depois de cada refeição e aplicar insulina com a mesma frequência.
Outra saída é o OpenAPS, um sistema gratuito desenvolvido nos Estados Unidos em 2015, quando ainda não havia soluções comerciais de pâncreas artificial.
Os usuários invadem bombas de insulina antigas para que passem a receber comandos de celulares. Como na versão comercial, o celular capta sinais enviados pelo sensor de glicose, interpreta os sinais com ajuda de um algoritmo e comanda a bomba.
O sistema é considerado seguro. Estudo publicado na New England Journal of Medicine registrou que pacientes usuários do OpenAPS tiveram três horas diárias no nível ideal de glicemia a mais do que quem estava no grupo controle, sem registro de casos graves de hipoglicemia.
“Meu controle glicêmico melhorou bastante, e o sistema diminui a carga emocional de ter que tomar muitas decisões por dia”, diz a estudante de medicina e influenciadora Maria Eduarda Dantas, 25, que é usuária do OpenAPS.
Duda foi diagnosticada com diabetes tipo 1 aos oito anos e aos 17 obteve a bomba de insulina pela via judicial. Antes disso, fazia o teste de ponta de dedo seis vezes por dia e aplicava insulina outras sete vezes.
A estudante diz que decidiu virar influenciadora depois de tomar contato com desinformação sobre diabetes no Youtube. “Tem muita fake news, gente oferecendo pílulas e chás milagrosos”, afirma, lembrando que o uso do sistema de código aberto exige alguma intimidade com o mundo digital.
“É uma solução boa para pacientes que são muito aderentes ao tratamento, que gostam de tecnologia e estão acompanhando [os índices de glicemia]”, afirma Gabbay, da Unifesp.
O sistema público de saúde do Reino Unido incorporou os sistemas de pâncreas artificiais em 2023, após concluir que seria mais barato disponibilizar a tecnologia do que arcar com as complicações –perda de função renal, cegueira, infarto e acidente vascular cerebral.
Em janeiro deste ano Portugal também começou a distribuir bombas de insulina nas farmácias.
No Brasil, o SUS distribui insulina, canetas de aplicação e glicosímetro, mas fracassou a tentativa da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) de incorporar sensores de glicose ao sistema público.
A Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) do Ministério da Saúde recomendou a não incorporação em dezembro do ano passado.
“Depois de procurar o produtor do sensor, a Conitec entendeu que não daria para incorporar por conta do impacto orçamentário”, diz Karla Melo, coordenadora da SBD. Ela diz que a sociedade está preparando uma análise de custo-efetividade da incorporação dos sistemas de pâncreas artificial.
O Ministério da Saúde afirmou em nota que a Conitec analisa efetividade, segurança e custo-benefício dos produtos sob análise. “Cabe ressaltar que o SUS oferta, gratuitamente, assistência integral a pacientes com diabetes, incluindo o diagnóstico inicial e o tratamento completo, de acordo com o quadro clínico apresentado”.
Em setembro do ano passado, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) vetou a distribuição dos sensores na rede pública paulista.