Entre os atributos de um hospital-escola está atuar na fronteira do conhecimento. É isso o que tem feito o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC). Eleito melhor hospital público do país em pesquisa Datafolha, o HC conduz estudos avançados com pacientes voluntários e participou do desenvolvimento das vacinas contra dengue e Covid-19, com o Instituto Butantan.
Segundo balanços atuais da instituição, foram iniciados 1.020 protocolos de pesquisa em 2023 e 1.296 em 2024. Para concentrar os trabalhos hoje distribuídos entre os nove institutos do hospital, a administração prevê inaugurar, no segundo semestre de 2026, um centro de pesquisas clínicas em um prédio que ainda está sendo construído.
No complexo hospitalar, afirma a professora Rossana Pulcineli, presidente do escritório que coordena os estudos, são feitas investigações propostas pela indústria farmacêutica com testes rigorosos rumo à aprovação regulatória.
Mas há ainda projetos elaborados por médicos do HC, docentes e pós-graduandos da faculdade de medicina. Os investigadores formulam hipóteses próprias e têm apoio de órgãos públicos de fomento, como CNPq, Capes e Fapesp.
Com o novo prédio, a estimativa é dobrar o número de projetos em execução. A instituição, diz Pulcineli, pode ampliar sua liderança no setor e passar de executora a propositora de estudos, não se restringindo apenas aos de iniciativa dos investigadores, mas também sugerindo pesquisas à indústria.
Esse passo tende a se beneficiar da diversidade de casos no HC. “Mesmo nas áreas mais difíceis, como idosos, pacientes com algum grau de imunossupressão, crianças e gestantes, nosso universo é muito grande. Temos condição de participar de qualquer tipo de pesquisa em qualquer uma dessas áreas”, afirma a presidente. “Essa é uma grande vantagem.”
Por ter uma população altamente miscigenada, diz a professora, o Brasil tem sido procurado como local estratégico em estudos internacionais. Essa diversidade genética amplia a validade dos resultados para diferentes regiões do mundo.
Completam os trabalhos desenvolvidos no HC as chamadas pesquisas de mundo real, que utilizam dados e evidências de populações mais amplas de pacientes para avaliações de medicamentos, além de aspectos como custo-efetividade e impacto de implantação de tecnologias na rede pública de saúde.
Esses estudos refletem a atuação do HC, que tem marcos na medicina como o primeiro transplante de rim e de útero da América Latina, o primeiro de coração do Brasil e o primeiro transplante intervivos de fígado no mundo.
A instituição ainda conduziu um transplante inédito do órgão em um caso de hepatite fulminante por febre amarela, que se tornou modelo nacional, e foi o primeiro hospital público do país a contar com um centro de ressonância magnética.
Na capital paulista, o HC também é um dos poucos da rede pública que realizam cirurgias robóticas. Os procedimentos, de mínima invasão, são feitos desde 2014 no Instituto do Câncer (Icesp) e, desde o ano passado, no Instituto Central. Cerca de 100 das 37 mil cirurgias anuais do HC são assistidas por robôs. Envolvem tanto casos oncológicos, como tumores de cabeça e pescoço e câncer de pâncreas, quanto quadros benignos, entre eles endometriose e hérnias abdominais.
A operação robótica garante destreza em espaços reduzidos, visão em alta resolução e conforto ergonômico ao médico, que opera sentado e com o rosto apoiado em um visor.
“Consigo usar uma pinça de cinco milímetros, com movimentos de punho, para dissecar uma lesão sem machucar o tecido saudável ao redor. Isso acelera a recuperação do paciente”, afirma o cirurgião do aparelho digestivo Ricardo Zugaib Abdalla.
Esse histórico de protagonismo, afirma o professor Edivaldo Massazo Utiyama, diretor clínico do hospital, remonta à origem da própria Faculdade de Medicina da USP, estruturada há mais de cem anos com apoio científico e acadêmico da Fundação Rockefeller.
Um dos compromissos assumidos na época, diz o diretor clínico, foi a construção de um hospital-escola pelo governo paulista, condição para viabilizar o modelo de formação idealizado e permitir que a comunidade acadêmica assumisse papel pioneiro. Desde então, ensino, pesquisa, assistência e gestão caminham juntos.
Exemplo disso foi a implementação, em 1945, do primeiro programa de residência médica do país, no serviço de ortopedia, pouco depois da fundação do HC, em 19 de abril de 1944, e sua contínua ampliação conforme a evolução da medicina.
“Se antes formávamos o obstetra, hoje formamos também quem faz cirurgia fetal. O avanço da residência caminha junto com o avanço tecnológico”, diz o professor.
Atualmente, são cerca de 1.100 alunos na graduação, mais de 1.800 na residência médica e multiprofissional e 3.374 no mestrado e doutorado. “Aqui se ensina porque se pesquisa”, destaca a professora Eloisa Bonfá, presidente do conselho deliberativo do HC e diretora da faculdade.
Principal complexo público de saúde da América Latina, o HC é uma referência em alta complexidade, com cerca de 1,4 milhão de consultas ambulatoriais anuais. Os atendimentos são regulados pelo Siresp, sistema estadual que organiza as demandas e controla o fluxo da rede, ou encaminhados por outros hospitais.
Os prontos-socorros do Instituto Central e do InCor (Instituto do Coração), com cerca de 135 mil atendimentos de urgência e emergência a cada ano, recebem só casos graves, levados por ambulâncias, resgates ou helicópteros, conforme diretriz do SUS.
Embora seja considerado modelo em infraestrutura e formação de profissionais, o hospital também enfrenta desafios em sua rotina. Em abril, um auxiliar de enfermagem foi preso em flagrante acusado de estuprar um paciente entubado e inconsciente na UTI do HC. O funcionário foi detido e desligado. A administração afirma colaborar com as investigações e prestar suporte ao paciente e aos familiares.
No complexo de 600 mil metros quadrados de área construída, além do centro de pesquisas clínicas, está sendo erguido o Instituto Dr. Ovídio Pires de Campos, que ampliará os atendimentos em oftalmologia, otorrino, bucomaxilo, cabeça e pescoço e cirurgia plástica craniofacial.
A expectativa, diz o superintendente Antonio José Pereira, é de que o instituto aumente em até 30% a capacidade assistencial. A entrega está prevista para 2028.
O HC também fortaleceu sua área de saúde digital, com mais de 600 mil teleconsultas realizadas desde 2020. “É uma forma de trazer equidade e eficiência ao sistema”, diz o superintendente.
“Um paciente transplantado, por exemplo, muitas vezes não precisa vir até aqui”, afirma Pereira. “Com a teleconsulta, ele pode ser atendido à distância, o que reduz custos, deslocamentos e até a emissão de carbono. É saúde, educação e sustentabilidade andando juntas.”