A cantora Preta Gil, 50, que estava internada no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, disse na quarta-feira (7) que vai continuar nos Estados Unidos o tratamento contra o câncer colorretal que ela enfrenta desde janeiro de 2023.
Em dezembro do mesmo ano, ela anunciou a remissão da doença após um período de tratamento bem-sucedido. No entanto, em agosto de 2024, Preta contou que o câncer havia voltado, um processo conhecido como recidiva.
No caso da cantora, houve metástase —quando o tumor sai do local inicial e se espalha pelo corpo— em quatro regiões: em duas estruturas do sistema linfático, conhecidas como linfonodos; no peritônio, uma membrana que reveste órgãos como intestino, fígado e estômago; e no ureter, tubo por onde passa a urina.
No dia 30 de março, Preta afirmou no programa Domingão (Globo), de Luciano Huck: “Agora entro numa fase difícil, complicada, porque aqui no Brasil a gente já fez tudo o que podia. Agora as minhas chances de cura estão fora do país”.
A diferença entre o tratamento nos EUA e no Brasil acontece porque, se por um lado a ciência biomédica permanece em marcha, com dezenas de novas drogas antitumorais sendo descobertas e testadas todos os anos, por outro existem sucessivos obstáculos para que essas inovações estejam ao alcance da população —especialmente em países como o Brasil.
Entre os entraves estão o tempo de aprovação de registro, a inclusão no rol obrigatório de oferta pelos planos de saúde (especialmente no caso de medicamentos orais) e a (não) decisão no que vai ser usado no SUS (Sistema Único de Saúde), do qual dependem diretamente 70% da população brasileira. Por fim, o Brasil ainda engatinha na oferta de ensaios clínicos, o que poderia trazer benefícios a milhares de pacientes.
Esses ensaios clínicos são aqueles pelos quais obrigatoriamente as novas drogas passam antes de chegarem ao mercado ou quando há novas indicações para elas. E uma característica deles no Brasil e na maior parte do mundo é que todo o tratamento dos voluntários é custeado pela patrocinadora (como uma indústria farmacêutica). No caso de uma comparação com algum outro tratamento, ela é feita contra o padrão-ouro vigente, ainda que não esteja disponível no SUS, e esse custo também é do patrocinador.
Já nos EUA, onde há uma concentração de centenas de farmacêuticas, muitas com seus ensaios clínicos em andamento, a regra é outra: quem paga pelo tratamento base (incluindo internação, exames, consultas e procedimentos já previstos) é o plano de saúde.
A patrocinadora só banca a nova droga, explica Gilberto Lopes, chefe da divisão de oncologia do Sylvester Comprehensive Cancer, na Universidade de Miami. Segundo ele, por causa dessa barreira financeira, são raros os pacientes brasileiros que conseguem participar desses estudos nos EUA —embora essa possibilidade muitas vezes represente uma chance real de acesso a tratamentos de ponta.
“O grande problema de pacientes participarem de ensaios clínicos nos Estados Unidos é que a maioria dos centros vai pedir que o paciente tenha convênio de saúde ou seguro de saúde daqui, senão a participação não é possível. Há alguns centros que permitem que pacientes paguem do seu próprio bolso, mas aí a gente está falando sobre centenas de milhares, até um milhão de dólares de depósito. Então realmente é algo pouco prático”, explica Lopes.
O grande problema de pacientes participarem de ensaios clínicos nos Estados Unidos é que a maioria dos centros vai pedir que o paciente tenha convênio de saúde ou seguro de saúde daqui, senão a participação não é possível. Há alguns centros que permitem que pacientes paguem do seu próprio bolso, mas aí a gente está falando sobre centenas de milhares, até um milhão de dólares de depósito. Então realmente é algo pouco prático
Nesse cenário, a diferença de escala entre os países ajuda a explicar por que tantos avanços seguem fora do alcance dos pacientes brasileiros. Na plataforma clinicaltrials.gov, que reúne dados sobre os estudos clínicos em todo o mundo, uma busca rápida por drogas que estão sendo testadas em fases iniciais de pesquisa contra o câncer revela que no Brasil realizam-se 82 estudos no momento, enquanto nos EUA acontecem mais de 3.700.
Considerando todo o setor farmacêutico, trata-se de um mercado global que rende US$ 1,6 trilhão (cerca de R$ 9,2 trilhões) por ano. Os EUA são responsáveis por 44% desse mercado; o Brasil, apenas 2%.
A discrepância entre Brasil e EUA também aparece em outras estatísticas. Um estudo apresentado na última edição do congresso da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica comparou a velocidade de aprovação de novas drogas pela FDA (agência reguladora dos EUA) e pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Nos EUA, a mediana (valor do meio em uma amostra ordenada) do tempo de aprovação foi de 184 dias; no Brasil o tempo é de 331 dias.
Mas essa demora não é a pior parte, dizem os especialistas. O Brasil, inclusive, é mais rápido do que a Europa nesse aspecto. O problema está na hora da incorporação. No caso de drogas injetáveis, elas costumam ser rapidamente disponibilizadas pelos planos de saúde após a aprovação. Já tratamentos orais sofrem alguma resistência para figurar no chamado rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). O abismo, porém, é em relação ao setor público.
“Quando os tratamentos eram mais simples, duas décadas atrás, havia um certo alinhamento entre o público e o privado, mas com essa revolução de novas tecnologias, principalmente novos medicamentos —drogas alvo direcionadas, imunoterapia e ADC [conjugados anticorpo-fármaco]— , a distância aumentou. Nos últimos 20 anos a maioria absoluta dos medicamentos aprovados pela Anvisa no Brasil não entrou no sistema público”, diz Angélica Nogueira, presidente da Sboc (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica) e pesquisadora da UFMG.
“Realmente é no SUS que a gente não tem acesso a praticamente nada que se considera novo, inovador e contemporâneo nos Estados Unidos”, diz Lopes, que é editor-chefe emérito do periódico científico Global Oncology.
Não é por acaso que, a cada 100 pessoas com diagnóstico de câncer, 70 são curadas nos EUA. Estima-se que a cifra no caso brasileiro seja algo em torno de 50 a cada 100, diz Nogueira, que ressalta que essa diferença não tem origem na qualidade da formação médica ou da estrutura dos hospitais.
Os ADC, ou conjugados anticorpo-fármaco, são uma das armas mais precisas da oncologia atual: combinam anticorpos que reconhecem alvos específicos em células tumorais com drogas potentes, liberadas diretamente nessas células, poupando os tecidos saudáveis. Um exemplo é o trastuzumabe deruxtecana, que tem mostrado eficácia mesmo em pacientes com câncer de mama com baixa expressão do HER2 — antes considerados fora do alcance das terapias-alvo. O custo do tratamento com ADC, assim como de algumas imunoterapias, pode chegar na casa de centenas de milhares de reais.
Apesar de avanços recentes, o Brasil ainda enfrenta gargalos regulatórios que dificultam a ampliação dos ensaios clínicos no país. A principal barreira apontada por especialistas está na morosidade para aprovação dos protocolos de pesquisa.
Para Nogueira, os prazos são pouco competitivos, e a lentidão faz com que, quando um estudo é finalmente iniciado no Brasil, ele já tenha recrutado a maior parte dos participantes na Europa ou nos Estados Unidos, restando poucas vagas para os pacientes brasileiros.
Até 2024, o país carecia de um marco legal específico para pesquisas com seres humanos. A Lei 14.784/2024 veio para suprir essa lacuna. Apesar de aprovada, a norma ainda não foi regulamentada. Estimativas da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa) apontam que o Brasil poderia saltar da 20ª para a 10ª posição global em pesquisa clínica, atraindo até R$ 3 bilhões por ano em investimentos diretos.
Mas ampliar a participação do Brasil na pesquisa clínica exige mais do que uma lei no papel. Há ainda outros desafios, lembra a presidente da Sboc. Um deles é a formação médica, que ainda tem pouca ênfase em estudos clínicos. Outro é cultural: há alguma resistência por parte de alguns pacientes à ideia de participar de estudos clínicos. No entanto, segundo Nogueira, a taxa de recusa, uma vez que o paciente é informado dos riscos e benefícios, é baixa: inferior a 2%.
Como os estudos geralmente começam em tumores mais avançados, os principais beneficiários acabam sendo justamente os pacientes sem outras opções terapêuticas disponíveis —e que não podem esperar pela burocracia.