Página Inicial Saúde Projeto leva música a pacientes do Hospital das Clínicas – 02/08/2025 – Equilíbrio e Saúde

Projeto leva música a pacientes do Hospital das Clínicas – 02/08/2025 – Equilíbrio e Saúde

Publicado pela Redação

“Um velho andava sozinho pela floresta, quase no fim. Dizem que as raízes lhe davam forças até encontrar uma casa com cheiro de bolo de avó. Caiu na porta, mas foi acolhido: a avó o ouviu, embalou na tristeza, fez cócegas nas alegrias. Quando o sol nasceu, era criança outra vez. As vozes antigas dizem que a avó mora no coração, no afeto, na memória, na herança que carregamos.”

Foi com essa história, aqui parafraseada, que a professora e arte-educadora Kelly Jardim entrou no quarto de duas gestantes de alto risco no Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). Ao lado do musicoterapeuta Geraldo Orlando, ela criou um ambiente de escuta e acolhimento.

A ação faz parte do projeto Contos e Cantos que Encantam, da associação Jamim Cultural. Uma equipe de quatro artistas, músicos e arte-educadores visita o Instituto Central uma vez por semana para levar arte aos pacientes. De agosto de 2024, quando a parceria foi iniciada, a julho de 2025, foram 33 intervenções, que alcançaram 1.056 pacientes, 338 acompanhantes e 756 profissionais de saúde.

“O diferencial do projeto é justamente esse cuidado individualizado”, explica Kátia Cilene, coordenadora da gestão de humanização do Instituto Central. “Cada história, cada música parte do que o paciente compartilha e, a partir disso, a equipe constrói o encontro.”

As visitas, também conduzidas por psicólogos e pedagogos, têm repertórios adaptados conforme o perfil de cada paciente. As intervenções artísticas semanais acontecem em diferentes alas do hospital, como UTIs (Unidades de Terapia Intensiva), ambulatórios, serviços de queimados e oncologia.

Mesmo pacientes sedados ou em coma podem reagir a esse tipo de estímulo, com expressões sutis, como um movimento de sobrancelha ou alteração da respiração, explica o psicólogo coordenador do projeto, Jean Jacques Vidal. “Em muitos casos, a sensibilização provocada pela arte ajuda o paciente a se abrir emocionalmente, o que favorece a adesão ao tratamento”, diz.

Desde 2009, Jardim atua em hospitais públicos, principalmente em UTIs e sessões de quimioterapia. “É como se a arte conseguisse atravessar uma escuridão muito profunda, como a água que encontra um jeito de passar. Muitas vezes ouvimos: ‘Essa é a história da minha vida’ ou era exatamente o que eu precisava’”, conta.

Segundo a artista, o objetivo não é camuflar a dor, mas acolhê-la. A abordagem começa pelo olhar e pela escuta. Muitos médicos já esperaram a apresentação terminar para só então realizarem um procedimento, ao perceberem que o paciente fica mais tranquilo. “A arte cria esse espaço de confiança.”

Para Geraldo Orlando, não se trata apenas de entreter ou provocar alegria. Formado em musicoterapia, com experiência prévia em cuidados paliativos, ele afirma que o trabalho com música nos hospitais é um tipo de cuidado que atua não só sobre o corpo, mas também sobre o humor dos pacientes.

Desde que começou a atuar em hospitais, também em 2009, ele diz ter presenciado de tudo: lágrimas, silêncios, festas improvisadas e reconexões com lembranças esquecidas. A escuta atenta e a presença afetuosa, segundo ele, são partes fundamentais do processo de cura.

O projeto também já esteve presente em momentos de fim de vida. “Às vezes, o familiar precisava de uma música para conseguir chorar. Uma vez, ao ouvir uma história, um homem disse: ‘Era isso que eu precisava para me despedir da minha companheira de 42 anos. Eu não tinha palavras, e você me deu’”, lembra Jardim.

O trabalho com música nos hospitais, diz Orlando, não se limita a levar alegria, inclui também o acolhimento da tristeza, da raiva e da angústia. “É sobre estar presente, escutar de verdade e perceber o que aquele momento precisa. Já fizemos festa, já choramos com pacientes, já dividimos silêncios.”

Para o aposentado Lúcio Francisco Inácio, 53, internado no Instituto Central para tratar uma úlcera nos olhos, a visita dos artistas serviu para reencontrar a sua fé. “Eu estava conversando com a Luciana [profissional da equipe] sobre como sentia que minha fé estava indo embora. Mas hoje Deus me provou que ela está mais viva do que nunca. Trouxe companhia, música, alegria.”

“Eles contaram uma história sobre Iemanjá, que acolhe Omolu, e eu sou filho de Omolu. Foi como se tivesse sido feita para mim”, diz. “Ele anda coberto de palha, mas muita gente acha que é para esconder as chagas. Não é. É porque ele é tão bonito quanto o Sol. Olhar para ele é como olhar direto para o Sol. E ele e Iemanjá são dois lados da mesma moeda.”

Foi a primeira vez que ele teve contato com o projeto Contos e Cantos que Encantam. Durante a visita da reportagem, na última terça (29), havia sete dias que Lúcio estava no hospital. Ele relatou uma trajetória de perdas e resiliência. Em 2022, após uma agressão de um irmão, perdeu a visão de um olho. Hoje, ele tenta entrar na fila para transplante de córneas.

“Foi como perder tudo. Fiquei cego, entrei em depressão, fui internado em uma clínica. Achava que ia melhorar, mas só piorava. Já passei por muita coisa.”

A proposta, segundo Edna Muniz, fundadora da Jamim Cultural, é alcançar cada pessoa de forma verdadeira. “A arte tem esse poder de olhar no olho, tocar uma memória e transformar o momento. É como se a vida voltasse a circular ali”, diz.

Cilene observa que os próprios profissionais de saúde passaram a solicitar as intervenções. “Eles nos dizem: ‘Fizeram com os pacientes, mas esqueceram da gente’. Quando são incluídos, se sentem cuidados e emocionados também. A leveza reverbera em todo o ambiente”, afirma.

No quarto das gestantes, as histórias e canções ativaram memórias e promoveram conexões emocionais. A alagoana Simoni Brandão, 40, grávida do primeiro filho, está internada devido a um quadro de diabetes que exigiu maior controle clínico. Ela fala da força e da leveza que sentiu com a visita.

“Veio com uma energia tão grande. A música aquece a alma, levanta, traz alegria”, relata.

Já a dona de casa Mikaeli Sales, 34, grávida do segundo filho, foi internada para monitoramento por ser cardiopata. “Às vezes, a gente está pensando em algo triste, e aquela música vem para lembrar o quanto a gente é forte, o quanto pode suportar o processo”, conta.

O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.

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