Quando fez um treinamento sobre como apalpar as mamas de mulheres em busca de eventuais nódulos, em agosto de 2022, a agente comunitária de saúde Laillyanne Luiza, 43, de Itaberaí (GO), sentiu-se receosa. “A gente visita as casas, fala de saúde, mas toque de mama eu nunca tinha feito. Fui com medo, mas fui.”
A reação das mulheres logo a tranquilizou. “A gente se conhece há muito tempo, então, elas confiam, se sentem seguras. Temos um elo de amizade. Muitas nunca tinham feito o autoexame de mama”, conta a agente, que atua em uma equipe de saúde da família há sete anos.
Laillyanne integra uma iniciativa inédita que reúne agentes comunitários de saúde, uso de aplicativos e mudanças de fluxos na gestão municipal e que foi capaz de reduzir em 50% os diagnósticos tardios de câncer de mama no município goiano.
Os resultados preliminares do projeto foram mensurados em estudo clínico e apresentados no congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco, na sigla em inglês), realizado no início deste mês em Chicago (EUA). O trabalho ainda está em andamento.
O ensaio clínico analisou dois grupos de mulheres e comparou as atuais recomendações do Ministério da Saúde para rastreamento do câncer de mama com uma nova proposta de ações combinadas, executadas por profissionais da UFG (Universidade Federal de Goiás) e do município de Itaberaí (a 92 km de Goiânia).
De acordo com os primeiros resultados do estudo, no grupo controle, que seguiu as recomendações do ministério, 60% dos casos de câncer estavam em estágios avançados (3 e 4). Já no grupo em que houve a intervenção, a taxa foi de 30%.
Entre os critérios para a inclusão no estudo estavam a mulher ter mais de 40 anos, nunca ter tido um diagnóstico de câncer de mama e já ser acompanhada por um agente de saúde.
No grupo controle, as agentes de saúde foram treinadas a orientar mulheres de 50 a 69 anos a ir ao posto de saúde e fazer uma mamografia a cada dois anos. Ou, se sentir alguma coisa na mama antes disso, procurar imediatamente a unidade básica de saúde.
No grupo intervenção, as agentes receberam treinamento para fazer o exame físico da mama na casa das mulheres. “Todos os agentes já têm na mão um palmtop, com um dispositivo do Ministério da Saúde, e isso facilitou muito”, diz o oncologista Ruffo Freitas Júnior, professor da UFG e idealizador do projeto.
No palmtop, os agentes dispõem de duas ferramentas eletrônicas: os aplicativos Rosa e RosaWatch. No primeiro são inseridas todas as informações da mulher examinada. Se houver alguma alteração no exame físico da mama, por meio do aplicativo é agendada uma consulta médica na unidade de saúde.
A agente de saúde Laillyanne conta ter encaminhado após o toque duas mulheres com suspeitas de tumor de mama, que não foram confirmados pelos exames complementares. “As mulheres nunca têm tempo de cuidar delas. Mas muitas mudam de atitude após a nossa orientação.”
De acordo com Freitas Júnior, ao chegar à unidade de saúde a paciente já é integrada ao RosaWatch, que faz toda a navegação dentro do sistema de saúde. Ela é examinada por uma mastologista e, confirmado o nódulo, já faz o ultrassom.
“Ela não precisa mais ir para Goiânia ou para um centro maior para fazer ultrassom. Naquela unidade ela já faz. Se tem o nódulo, já faz uma biópsia ali mesmo. Esse material vai para o exame anatomopatológico para saber o que é. Só aí é que ela vai fazer mamografia.”
Segundo ele, a estratégia se mostrou eficaz em reduzir o tempo que a mulher gastava para fazer a mamografia, esperar o resultado e só então ser submetida à biópsia da mama. A proposta é que, caso confirmado o câncer, o tratamento seja iniciado em até 30 dias.
O investimento envolveu a compra de um aparelho de ultrassom e o treinamento das agentes para o exame físico e de médicos para fazer a biópsia. “O resto foi aproveitado do que a cidade já tem de capacidade. Esse é o grande diferencial. Baixa tecnologia, treinamento, organização do fluxo de pacientes dentro do sistema de saúde. Não tem nenhuma tecnologia de ponta.”
Freitas Júnior diz que a ideia do projeto surgiu diante do cenário desolador do câncer de mama no SUS: em média, 54% dos tumores são descobertos em estágios avançados (3 e 4).
“É uma situação caótica: 1 em cada 2 brasileiras tem diagnóstico de câncer de mama em estágio 3 e 4. Em alguns lugares, como no meu estado [Goiás], essa taxa chega a 72%”, diz o médico, associado da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica.
Segundo ele, há também gargalos no acesso ao tratamento oncológico, que começa com atraso em cerca de 60% dos casos. “Nada mudou na última década. Independentemente de qual governo fosse, Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro, pré-pandemia, pós-pandemia, não houve nenhuma mudança estrutural que tenha melhorado essa questão.”
O oncologista diz ter se inspirado em uma experiência indiana para desenhar o projeto goiano, com apoio do promotor de Justiça Paulo Henrique Otoni. A Prefeitura de Itaberaí encampou a ideia, e a Câmara aprovou uma lei municipal com dotação orçamentária (R$ 400 mil por ano).
A opção por executar o projeto por meio de um estudo clínico nível 1, o mais alto nível de evidência, foi para evitar questionamentos dos conselhos médicos sobre o treinamento de agentes comunitários para examinar as mamas de mulheres, afirma o médico.
Freitas Júnior reforça que o modelo é facilmente replicável em outros municípios brasileiros. “Todas as cidades têm agentes comunitários de saúde. As ferramentas são públicas e podem ser utilizadas, com a vantagem de já terem sido testadas e [tendo] mostrado os benefícios.”
Segundo Angélica Nogueira, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, há importantes revoluções terapêuticas para o controle do câncer, mas ainda não existe nenhuma estratégia que seja superior ao diagnóstico precoce.
“Em um país complexo como o nosso, é preciso priorizar estratégias como essa [de Goiás]. Não é à toa que o estudo [goiano] teve grande visibilidade no congresso. Já temos uma rede básica estruturada para fazer isso acontecer.”
A médica acrescenta que o diagnóstico precoce é hoje definidor de cura e de tratamentos menos tóxicos para o paciente. “Do posto de vista dos custos, é muito mais barato para os cofres públicos tratar uma doença inicial.”
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde