Por anos se falou em narcisistas como pessoas que esbanjam amor próprio e são obcecados pela própria imagem. O termo usado no senso comum é muito baseado no mito de Narciso —aquele em que um belo jovem se apaixonou pelo próprio reflexo e morreu de tanto contemplá-lo. Mas, na atualidade, o transtorno de personalidade narcisista é um diagnóstico psiquiátrico que traz muito sofrimento a todos os envolvidos.
Pensando na pessoa que é vítima de um abuso narcisista, a psicóloga Ramani Durvasula, professora da Universidade Estadual da Califórnia, escreveu o livro “O problema não é você”, lançado no Brasil pela editora Sextante. As pessoas que cruzam o caminho de narcisistas podem ser tão diminuídas pelas manipulações e invalidações que sentem que há algo de errado com elas. É para esse público que ela escreve.
Hoje se fala muito mais sobre o transtorno em si do que o termo usado no senso comum, mas não é tão fácil assim encontrar de fato um narcisista. É um diagnóstico demorado e complexo.
“O perigo é quando as pessoas usam esse termo para focar um único evento problemático em um relacionamento”, pontua Durvasula. “Quando fazemos isso, não é só depreciativo, mas pega uma palavra poderosa e profunda e minimiza, desvaloriza e banaliza a experiência das pessoas que realmente estão em relacionamentos narcisistas.”
Para a psicóloga, para ser um narcisista de fato, a pessoa tem que apresentar todos os sinais que compreendem o diagnóstico. Narcisistas são pessoas manipuladoras, desdenhosas, que tendem a desvalorizar e invalidar o outro, praticam gaslighting e revertem toda a culpa em cima da pessoa com quem se relacionam. Além disso, a autora destaca a falta de responsabilidade e responsabilização por seus atos.
“Tem um processo, tem consistência. Para determinar o diagnóstico, estamos olhando para um padrão de comportamento”, explica. “Em muitos casos, as pessoas estão nesses relacionamentos por anos. Elas têm evidências de diários, cartas, emails, mensagens e testemunho de outras pessoas.”
Esse é um comportamento que pode estar presente em relacionamentos amorosos, amizades e até dentro da família. Quando em relacionamentos amorosos, ela menciona que a sociedade pode reforçar alguns padrões que deveriam ser observados com cautela, como a obsessão intensiva no início do namoro.
O que para muitos parece normal, pode afastar a pessoa das amizades, dos seus hobbies e interesses, fazendo com que fiquem totalmente com o parceiro romântico. A psicóloga diz acreditar que tendemos, enquanto sociedade, a romantizar as histórias que são intensas e rápidas, como as de almas gêmeas.
“Isso coloca a pessoa narcisista em vantagem para criar um começo de relacionamento dos sonhos. O que deixa o outro ainda mais preso na relação depois, porque ficam querendo voltar para o início.”
Durvasula diz que relacionamentos saudáveis são estáveis, previsíveis e fazem com que ambas as partes se sintam psicologicamente seguras. Relacionamentos dramáticos, com altos e baixos, criam ciclos tóxicos.
Ela afirma que uma forma de transformar esse padrão enquanto sociedade é contar diferentes tipos de histórias de amor. Ensinar jovens, principalmente na pré-adolescência, não só educação sexual, que é importante, mas sobre manipulação, coerção e o que é ou não ser aceitável em um relacionamento.
Mas, mesmo se não trabalhado enquanto criança, não é tarde demais. Se você perceber que alguém próximo pode estar envolvido em um relacionamento narcisista, é preciso ter cautela ao oferecer apoio. A psicóloga aconselha ouvir atentamente, sem julgamentos ou tentativas de solucionar o problema.
“Escute o que seu amigo tem a dizer e valide a experiência dele, porque ele não está sendo validado em seu relacionamento”, fala. “Perceber que outras pessoas notam a mudança de comportamento é muitas vezes o primeiro passo para falar abertamente sobre isso.”
Tentar solucionar a questão, dizendo que a pessoa deve terminar o relacionamento, por exemplo, pode fazer com que ela divida ainda menos sobre o que está passando, porque muitas pessoas não podem —ou não conseguem— abandonar a relação naquele momento, explica.
No processo de recuperação de um relacionamento narcisista, a autora menciona o conceito de aceitação radical. Ela afirma que não é, de forma alguma, parecido com se submeter ao relacionamento apenas concordando com a forma como ele é. A aceitação radical é, de fato, tomar consciência de que a realidade é essa e não irá mudar, e não é responsabilidade da vítima fazer com que mude.
“Isso é importante tanto se você resolve deixar o relacionamento ou ficar”, diz. Para quem decide ficar, seja qual for o motivo, a aceitação radical é abandonar as expectativas de um relacionamento mais saudável, entendendo as limitações e se protegendo emocionalmente, se envolvendo de forma diferente, e desenvolvendo outras redes de apoio fora daquela relação.
Perceber essa realidade pode ser difícil e doloroso, acrescenta a psicóloga, e pode trazer o luto de algo que gostaria de ter tido, mas não se teve. Mas, atravessando o momento de tristeza, ela postula a aceitação radical como a forma de se recuperar dos abusos narcisistas, mesmo permanecendo no relacionamento. Negar o sofrimento seria negar a realidade, impedindo a recuperação.
“Eu acredito que a cura pode às vezes ser um pouco mais fácil para quem sai da relação, por não ter a constante exposição à invalidação. Mas eu sei que a cura também é possível para quem fica.”
Durvasula diz que é importante atentar que isso não funciona para relacionamentos de abuso severo ou violência, em que a segurança deve vir em primeiro lugar.
Para quem decide deixar a relação, a aceitação radical também tem o lugar de perceber que a pessoa não será diferente, mesmo com outras pessoas. Essa realização importa para se manter forte porque, ao sair de um relacionamento narcisista, a pessoa fica sujeita a enfrentar difamação e perseguição.
Pelo sofrimento e também pela dificuldade de deixar esse tipo de relacionamento, muitas pessoas podem ter medo de entrar em novos relacionamentos, o que ela diz ser um medo real e razoável.
“Muitas pessoas temem se relacionar com uma pessoa narcisista de novo. E eu digo, você ficará bem de novo. Verá mais rapidamente, e será mais fácil de sair. Quem passou por um relacionamento narcisista se relaciona de forma diferente, mais devagar, com menos vulnerabilidade no início. Mas será um novo relacionamento para se confiar.”