“Eu tinha que implorar, pedir para irem me atender”, diz a carioca Mariana (nome fictício), 34. Ela foi internada em abril no IFF (Instituto Fernandes Figueira), hospital ligado à Fiocruz, no Rio de Janeiro, para realizar um aborto previsto em lei, depois de ter sofrido violência sexual em fevereiro.
Terminou deixando o serviço uma semana depois, ainda grávida, e afirma ter sofrido violência psicológica dentro do hospital. “Eles tinham que me dar a medicação de três em três horas, mas me largavam lá. Aí o medicamento não fazia efeito, eu comecei a ficar machucada, assada pelo jeito que colocavam o remédio na minha vagina”, contou à Folha.
O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), sancionou no último dia 12 uma lei que determina a colocação de cartazes com frases contrárias ao aborto —além de informações falsas que associam o procedimento à infertilidade, por exemplo— em estabelecimentos de saúde municipais.
Na última quinta-feira (19), a Justiça do Rio de Janeiro anulou os efeitos da lei que obrigava hospitais da rede municipal da capital carioca fixar cartazes com mensagens antiaborto. A decisão judicial atendeu pedido de ação civil pública movida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro e fixou multa diária de R$ 1.000 por estabelecimento que mantiver os cartazes.
Em nota, a gestão Paes afirmou que estão suspensos os efeitos até que se julgue sua constitucionalidade
Os cartazes teriam frases como “Você tem direito a doar o bebê de forma sigilosa. Há apoio e solidariedade disponíveis para você. Dê uma chance à vida!”; “Você sabia que o nascituro é descartado como lixo hospitalar?”; e “Aborto pode acarretar consequências como infertilidade, problemas psicológicos, infecções e até óbito”.
A Folha ouviu relatos de mulheres como Mariana e ativistas que ajudam pacientes a acessarem o aborto legal e que afirmam que mesmo antes dessa lei já encontravam barreiras e violência obstétrica em unidades de saúde do Rio e de outras cidades do estado.
“Os cartazes propostos contribuem para a disseminação de informações falsas e estigmas sobre o aborto, o que pode afastar pessoas dos serviços de saúde, colocando sua saúde em risco, agravando situações de sofrimento físico e emocional e reforçando desigualdades sociais”, diz um ofício enviado a Paes por organizações que formam a Frente Estadual Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto.
As ativistas afirmam que pediram uma reunião com o prefeito antes do prazo de sanção, mas não foram atendidas.
“Fora a tortura psicológica que é imposta a quem se depara com esse tipo de informação. Imagina você estar grávida, desejando ter um filho, mas precisa de um aborto para salvar a sua vida e precisa encarar informações de falsos riscos e falsas consequências sobre o aborto?”, diz Laura Molinari, diretora da campanha Nem Presa Nem Morta, que defende a descriminalização do aborto.
Segundo a Secretaria Estadual de Saúde do Rio, foram realizados 384 abortos legais no estado em 2024, e 143 neste ano.
Para Molinari, o número é baixo se comparado aos dados de violência sexual no estado. De acordo com dados do ISP (Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro), em 2024 foram notificados mais de 5.000 casos de estupro no estado, um recorde histórico. No caso da violência sexual, é possível que o número seja ainda maior, já que estima-se que muitas vítimas, principalmente menores de idade, não cheguem à polícia.
A Secretaria de Saúde afirma que há 31 unidades que realizam aborto legal no estado, entre federais, municipais e estaduais. Dentre elas, porém, apenas duas realizam o procedimento acima de 22 semanas —o Fernandes Figueira e a maternidade-escola da UFRJ, ambas de administração federal.
Além disso, pacientes que conversaram com a Folha afirmam ter tido dificuldades para acessar os serviços. Uma vítima de violência sexual contou ter procurado o Fernandes Figueira em 2024 com a gestação acima das 22 semanas e sido desencorajada pela equipe do hospital de seguir com o procedimento.
De acordo com o relato, corroborado por outra pessoa que estava na reunião, integrantes da equipe do hospital teriam afirmado que a vítima teria que sepultar o feto caso realizasse o aborto. A legislação brasileira determina que fetos acima de 22 semanas ou 500 gramas sejam sepultados, mas não estabelece que isso deva ser feito pela gestante.
Jéssica (nome fictício), vítima de violência sexual que mora no interior do estado, conta que precisou abortar uma gestação acima de 22 semanas. Encontrou apoio no Nuavidas, serviço de aborto legal de Uberlândia (MG), apesar de morar a cerca de três horas do Rio —e estar a dez horas de distância da cidade mineira.
Ao retornar à sua cidade, passou a ser contatada por funcionários de uma UBS (Unidade Básica de Saúde) local para prestar esclarecimentos sobre o óbito fetal. “Fiquei com medo, principalmente porque era uma pessoa que me conhecia, e eu não queria que todo mundo ficasse sabendo que eu tinha feito um aborto”, diz à Folha.
Em 2025, até maio, o serviço de Uberlândia atendeu três pacientes fluminenses. “É muito ruim ter que ir tão longe para conseguir o acesso”, diz Jéssica.
Em 2023, quando a Folha acompanhou a rotina do serviço para o podcast Caso das 10 Mil, o Nuavidas atendia uma paciente do Rio que buscava o aborto por risco de vida para a gestante. A mulher, que estava com nove semanas de gestação, relatou não ter conseguido acessar os serviços na cidade.
Mariana, a paciente internada no Fernandes Figueira, afirma que uma médica teria entrado na enfermaria onde ela estava para dizer que não a atenderia. “Ouvi que a prioridade não era eu, era ‘quem estava gestante’. Não aguentei mais ficar lá e, depois de uma semana, pedi para assinar a alta e sair.”
Segundo a médica Helena Paro, coordenadora do serviço de aborto legal do Nuavidas, a aplicação dos remédios como relatado por Mariana “está em desacordo com os protocolos internacionais e nacionais”.
Em nota, o Instituto Fernandes Figueira afirmou que “realiza a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, incluindo situações de violência sexual e anencefalia, sem limite de idade gestacional, conforme preconiza a legislação penal brasileira”.
O hospital diz que “cada caso é avaliado individualmente, assegurando os direitos e a saúde das pacientes. No primeiro trimestre de gestação (até 12 semanas), o protocolo prevê que o esvaziamento uterino é realizado por meio de Amiu (Aspiração Manual Intrauterina) ou de forma farmacológica (com misoprostol). Após esse período, é priorizado o método farmacológico e, havendo presença de resíduos placentários, há indicação de revisão cirúrgica”.
Sobre o uso de medicamentos, disse que “podem ocorrer pausas por intercorrências clínicas, como febre ou alterações gastrointestinais, necessidade de descanso uterino, ou por decisão médica quanto ao ajuste de dose ou via de administração. A depender da evolução da indução, outras alternativas ao protocolo inicial podem ser adotadas.”
Também procurada, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro afirmou que há quatro maternidades estaduais que realizam o procedimento: Hospital da Mulher Heloneida Studart (São João de Meriti), Hospital Estadual da Mãe de Mesquita (Mesquita), Hospital Estadual Azevedo Lima (Niterói) e Hospital Estadual dos Lagos – Nossa Senhora de Nazareth (Saquarema).
A pasta disse que as mulheres podem procurar qualquer maternidade habilitada para a realização do procedimento. “A recomendação é que o primeiro contato ocorra preferencialmente em uma UBS, onde será realizado o acolhimento inicial e, quando necessário, o encaminhamento para a unidade de referência para realizar o procedimento.”
Já a Secretaria Municipal de Saúde do Rio afirmou que “todas as maternidades da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro são obrigadas por lei a realizar a interrupção da gestação até 22 semanas” e que as mulheres devem procurar as Salas Lilás.