A anafilaxia, forma mais grave de reação alérgica, ainda encontra barreiras de diagnóstico e tratamento no Brasil. Segundo dados do primeiro Registro Brasileiro de Anafilaxia, lançado pela Asbai (Associação Brasileira de Alergia e Imunologia), apenas 8,2% dos 318 pacientes incluídos no levantamento tinham acesso à caneta de adrenalina, tratamento de urgência capaz de evitar mortes.
No Brasil, o medicamento autoinjetável ainda não tem registro aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e só pode ser adquirido por importação, a um custo elevado. Segundo especialistas, o valor supera R$ 2.000 e pode variar conforme o câmbio.
A maioria dos pacientes com a condição depende do atendimento hospitalar, o que pode atrasar o acesso à medicação e levar ao óbito. Em 50% dos 318 casos analisados no levantamento, a adrenalina foi aplicada, mas em sua maioria (42%) de forma hospitalar —o que revela um atraso potencialmente perigoso.
Entre 2023 e maio de 2025, o SUS registrou 8.235 atendimentos ambulatoriais por anafilaxia —casos tratados sem internação, em unidades como UBS (Unidade Básica de Saúde) e ambulatórios. No mesmo período, houve 177 atendimentos em âmbito hospitalar, que envolvem situações mais graves, com necessidade de internação ou monitoramento. Os dados, do Ministério da Saúde, não incluem o número de óbitos.
O Ministério da Saúde afirma que a incorporação da caneta ao SUS depende de registro na Anvisa, para que seja avaliada pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS).
Neste mês, a Comissão de Saúde da Câmara aprovou o Projeto de Lei 85/2024, que prevê a oferta gratuita da caneta de adrenalina pelo SUS para pacientes com indicação médica. A proposta ainda precisa passar por outras comissões antes de ir ao Senado.
A anafilaxia pode causar sintomas como dificuldade para respirar, perda de consciência, vermelhidão, queda de pressão arterial e alterações na frequência cardíaca. A única forma eficaz de estabilizar o paciente nos primeiros minutos da crise é com a aplicação imediata de adrenalina por via intramuscular. A caneta de adrenalina serve justamente para esse uso de emergência, fora do ambiente hospitalar.
Em hospitais, a adrenalina é aplicada por profissionais de saúde a partir de ampolas injetáveis, mas esse acesso pode não ser rápido o suficiente em casos graves fora do ambiente clínico. Outros medicamentos, como corticoides e anti-histamínicos, podem ser usados como coadjuvantes, mas podem não ser suficientes para evitar o agravamento ou a morte.
“Essa é uma doença subdiagnosticada. A falta de dados, de notificações e o desconhecimento sobre os sinais da anafilaxia atrasam o diagnóstico e comprometem o tratamento”, afirma a médica alergista e imunologista Fátima Rodrigues Fernandes, presidente da Asbai.
“Muitas vezes o CID (Classificação Internacional de Doenças) utilizado nos atendimentos não é o da anafilaxia, mas sim de urticária, síncope ou crise asmática, o que distorce as estatísticas”, acrescenta.
Segundo ela, o novo registro foi criado com apoio da comunidade médica de alergistas para mapear os casos em todo o país. A coleta dos dados é feita a partir dos relatos clínicos de pacientes atendidos fora da fase aguda da crise, em consultórios especializados.
“A ideia é entender quem são esses pa cientes, o que causou a reação, quanto tempo demorou para serem socorridos, como evoluíram e se precisaram de internação. Só assim conseguimos ter uma casuística nacional”, explica.
Entre os 318 pacientes registrados, com idades entre 2 e 81 anos, a média foi de 27 anos. A maioria dos atendimentos foi nas regiões Sudeste e Sul, com destaque para os estados de São Paulo (22%), Minas Gerais (17,6%), Paraná (14,5%) e Rio de Janeiro (13,5%). Foram registrados 15 casos que exigiram intubação, 10 pacientes precisaram de reanimação e houve um óbito.
Os dados, no entanto, representam apenas uma parcela dos casos registrados no país e provavelmente estão subestimados, aponta Fernandes. Isso porque o levantamento depende dos relatos clínicos feitos por médicos alergistas fora da fase aguda da crise, o que deixa de fora pacientes que morreram antes de receber atendimento especializado ou que sequer chegaram a ser encaminhados a um especialista.
“Não conseguimos captar os casos mais graves que não chegaram ao consultório, como mortes ocorridas no domicílio ou durante o transporte até o hospital”, afirma a especialista.
Segundo a pesquisa, os alimentos são os principais responsáveis pelos casos de anafilaxia no Brasil, sendo que 42,1% das reações foram provocadas por alimentos como leite de vaca (12,9%), mariscos (6,9%), ovo (5,6%), trigo (3,1%) e amendoim (3,1%). Medicamentos causaram 32,4% dos episódios e ferroadas de insetos responderam por 23,9% dos casos.
Entre as crianças, os principais agentes causadores foram alimentos, como leite, ovo, trigo e amendoim. Já em adultos, predominam os medicamentos, especialmente anti-inflamatórios, antibióticos e imunobiológicos. Ferroadas de insetos, como abelhas, vespas e formigas, aparecem em terceiro lugar.
Fernandes alerta que muitos pacientes descobrem ser alérgicos apenas quando sofrem a primeira crise grave. “Não temos a caneta de adrenalina disponível no Brasil, nem por venda nem pelo SUS. Quando o paciente é diagnosticado, prescrevemos o kit de emergência, que inclui a caneta, mas a maioria não consegue acesso. Alguns tentam importar, outros acabam sem nenhum recurso.”
Além da autoinjeção, o kit pode conter corticoides e anti-histamínicos, mas esses medicamentos não substituem a adrenalina. “Se o paciente desmaiar, por exemplo, não adianta dar comprimido. A única forma eficaz de estabilizá-lo é com a adrenalina aplicada na hora certa”, afirma.
Diferente do Brasil, em países como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Austrália a caneta de adrenalina é aprovada pelas agências reguladoras, incluída em protocolos de emergência e facilmente obtida em farmácias com prescrição médica.
De acordo a Anvisa, não há nenhuma empresa autorizada a importar ou distribuir a caneta de adrenalina de forma regular no país. Além disso, até o momento não foi feito nenhum pedido de registro de medicamentos contendo adrenalina em canetas ou dispositivos auto-injetáveis.
Recentemente, um grupo de pesquisadores brasileiros da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) desenvolveu a primeira caneta de adrenalina do Brasil. Líder do grupo, o professor da UFRJ e pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), Renato Rozental, explica que o protótipo já está pronto, mas ainda depende de aporte financeiro para avançar à etapa de produção em escala industrial e registro na Anvisa.
“O problema não é mais desenvolver a tecnologia, e sim estruturá-la para produção. Precisamos do financiamento para fabricar a caneta e submetê-la à Anvisa. Sem isso, não conseguimos ofertar o produto à população”, explica.
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.