Darwin, tendo concedido que a vida que existe hoje não foi sempre assim, entrou em um baita buraco de coelho: explicar como as espécies que ocupam a Terra mudam ao longo do tempo. Sem saber nada sobre genética, epigenética, desenvolvimento ou auto-organização, ele usou o que tinha à mão, que era a evidência do poder da mão humana selecionando pombos e cachorros mais assim ou mais assado conforme a vontade do freguês. O resultado da sua argumentação consigo mesmo foi a teoria de que a vida evolui conforme a mão da seleção natural escolhe os seres que têm características vantajosas na competição com os outros.
Desde então, biólogos e outros cientistas da vida nem pensam duas vezes: se uma característica existe, é porque ela deve (1) servir para alguma coisa e (2) conferir alguma vantagem evolutiva. Não vou discutir aqui por que essa premissa é absurda, pois vou precisar de um livro inteiro para explicar porque nenhuma vida precisa ser melhor do que as demais: basta funcionar.
Mas vou, sim, adentrar um buraco de coelho particular, que eu mencionei semana passada: o fato de alguns animais serem endotérmicos.
A palavra sinaliza a capacidade de produzir calor internamente, quer dizer, a partir do próprio metabolismo. Sem saber de mais nada a respeito, já dá para intuir que produzir calor é ideia de jerico dispendiosa. Foi exatamente por causa do custo, afinal, que a humanidade resolveu trocar lâmpadas incandescentes pelas chamadas “lâmpadas frias”, muito mais eficientes, que transformam eletricidade em luz sem desperdício de energia na forma de calor.
Pois é: a grandessíssima parte das espécies animais funciona perfeitamente bem, obrigada, sem gastar energia produzindo calor. Aí vêm os mamíferos de um lado, e as aves de outro, esbanjando sangue quente, e os biólogos já partem em busca de explicações adaptacionistas, pois, como Darwin ensinou, se uma característica existe, sobretudo quando é dispendiosa, é porque ela deve servir para alguma coisa e dar alguma vantagem que compense o custo.
“É para poder ter vida noturna escondida dos dinossauros”, disseram uns. “É para poder ser mais ativo e correr mais tempo atrás de comida”, disseram outros. “É para fazer a digestão mais rápido”, tentaram também. Explicações de finalidade não faltam. Mas todas ignoram o problema central: sem ter mais energia disponível para gastar, não dá nem pra brincar de testar ser mais ativo.
E de onde vem a energia que sustenta o calor do corpo de mamíferos e aves, produzido pelo funcionamento a todo vapor de órgãos internos como o cérebro, o fígado e os rins? Vem da respiração celular, que literalmente queima glicose às custas de oxigênio e transfere o que sobra para as enzimas que mantêm a vida. A gente só não pega fogo porque essa queima é um processo de combustão gradual e altamente controlada no interior das mitocôndrias. Mas é combustão, e como o fogo, ela também gera calor.
Teve gente achando que para ter sangue quente bastava ganhar isolamento térmico, mas o herpetologista Raymond Cowles teve a ideia genial de vestir lagartos com casacos de pele e demonstrou rapidinho que não é assim. Produzir calor custa energia, e não é necessário nem para iluminar a casa, nem para animais funcionarem. Mas, se algo muda nos pulmões que aumenta a superfície de absorção de oxigênio, o que aconteceu nos mamíferos e também nas aves, o corpo todo agora tem mais energia disponível, e produz mais calor… porque pode.
Simplesmente dar mais energia a uma lâmpada fria, contudo, não faz ela gerar calor. O que é tão diferente em animais? Minha resposta é: o cérebro. Volta aqui semana que vem que eu conto mais.
Referência
Cowles RB (1958). Possible origin of dermal temperature regulation. Evolution 12, 347-357.
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