Recaída é muito diferente de volta ao uso. Para nós, alcoólatras, é muito importante entender a fundo a doença e difundi-la para as pessoas que estão ao nosso redor. Não como uma cartilha que se decora, mas com verdade, esclarecendo as questões primárias da doença.
Uma das questões mais mal compreendidas é a diferença entre “recaída” e “volta ao uso”. Duas expressões que são tratadas como sinônimos, mas que, na prática, são bem diferentes.
Na novela “Vale Tudo”, um exemplo clássico dessa confusão é o comportamento da personagem Heleninha Roitman. Vivendo uma luta constante contra o alcoolismo, ela frequentemente aparece bebendo, e todas as pessoas ao seu redor chamam esses episódios de recaída. Mas não é bem assim.
A recaída é quando depois de muito tempo sem beber, a alcoólatra bebe, abandonando a recuperação — emocional, psicológica, comportamental e espiritual. É deixar de frequentar grupos de apoio, parar de usar as ferramentas aprendidas, justificar o uso, esconder, manipular e, acima de tudo, perder o desejo (ou a esperança) de parar novamente.
A volta ao uso, ou lapso, como costumamos chamar nos Alcoólicos Anônimos, é o ato recorrente do consumo da bebida. A doente não consegue ficar sem beber por muito tempo, nem podemos chamar de que ela está em recuperação, porque de fato não deu tempo suficiente para que ela entrasse no processo.
No caso de Heleninha, o que vemos é menos um caso de recaída e mais um exemplo claro de volta ao uso, ou até continuidade do uso, sem que de fato tenha havido um processo de recuperação consolidado antes. Ela não demonstra um real compromisso com a sobriedade, não busca ajuda constante, não adere a um programa de recuperação. Portanto, é um ciclo vicioso e permanente de uso.
Essa distinção importa porque ela muda o modo como lidamos com a doença. Se cada gole for tratado como uma recaída devastadora, criamos um ambiente de culpa e punição que muitas vezes afasta o dependente da ajuda. Por outro lado, se ignorarmos os sinais de alerta e tratarmos uma retomada como algo leve e inofensivo, corremos o risco de não agir a tempo de ajudar o doente a entrar nos trilhos.
É importante lembrar que as tentativas de parar de beber não são um fracasso. Faz parte do processo da doença. Muitas pessoas, como eu, vivem há anos em abstinência contínua. E isso é motivo, para mim, de orgulho e responsabilidade. Eu posso ajudar outros doentes, como tento nesta coluna.
Portanto, precisamos mudar a maneira como falamos do alcoolismo. Precisamos parar de romantizar ou banalizar o uso contínuo como “recaída” e entender que a sobriedade exige mais do que apenas ficar sem beber —exige transformação de vida. Heleninha Roitman é uma personagem complexa, mas representa algo que vemos muito no mundo real: a dificuldade de reconhecer que parar de beber vai muito além de fechar a tampa da garrafa.
E para quem já deu o primeiro passo e está limpo há algum tempo, saber diferenciar recaída de retorno ao uso é essencial para dar prosseguimento à recuperação. Afinal, reconhecer onde estamos e para onde podemos ir é o que nos mantém firmes, um dia de cada vez.
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