A ameaça do presidente americano de aplicar tarifas de 50% sobre as importações da União Europeia, uma escalada de sua guerra comercial, pode reduzir a resistência da França a aceitar o acordo, avaliam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Tarifas de Trump têm levado à escalada de guerra comercial global.
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A ameaça do presidente americano, Donald Trump, de aplicar tarifas de 50% sobre as importações da União Europeia (UE), uma escalada de sua guerra comercial, pode reduzir a resistência da França a aceitar o acordo entre o bloco europeu e o Mercosul, na avaliação de especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
O assunto deve ser um dos focos da visita de Estado do presidente Lula à França a partir desta quarta-feira (4/6).
Apesar das boas relações bilaterais, o líder francês, Emmanuel Macron, declarou em inúmeras ocasiões sua oposição categórica ao tratado de livre comércio concluído em dezembro passado em Montevidéu, no Uruguai, reiterando que o texto finalizado, após 25 anos de discussões, é “inaceitável”.
A entrada em vigor do texto ainda depende da aprovação de outras instâncias da UE.
“A decisão americana de aumento das tarifas é muito violenta, com forte impacto em países como a França e a Alemanha, e suscita reflexões estratégicas na Europa sobre a necessidade de buscar parceiros comerciais diferentes”, afirma Antoine Bouët, diretor do Centro de Estudos Prospectivos e Informações Internacionais (CEPII) e professor de economia da Universidade de Bordeaux.
“Do lado francês, pode haver uma reconsideração da posição em relação ao acordo com o Mercosul.”
Inicialmente, em fevereiro, os EUA anunciaram tarifas de 25% sobre os produtos europeus. Depois em maio elas passaram para 50% e deveriam entrar em vigor em 1° de junho. Mas após uma nova reviravolta, Trump recuou e adiou o ultimato para 9 de julho. No entanto, no caso do aço e do alumínio, o presidente americano declarou na sexta passada que a alíquota de 50% já seria aplicada nesta semana.
“O setor industrial francês, sobretudo automotivo, de transporte e de vinhos, está inquieto com o novo cenário internacional e pressiona o governo para a aprovação do acordo com o Mercosul”, ressalta Bouët.
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Macron tem feito oposição ao acordo Mercosul-UE.
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A oposição do governo francês ao texto é motivada pela pressão dos agricultores, que alegam ter de cumprir exigências sanitárias e ambientais mais rigorosas de produção e denunciam a concorrência, que poderia destruir milhares de empregos. Ecologistas também se opõem ao texto. As autoridades francesas temem novos protestos agrícolas como os que ocorreram no ano passado e que bloquearam eixos centrais de rodovias no país.
Macron teria ficado tão furioso com a conclusão das negociações que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que participou da cúpula em Montevidéu, não compareceu à cerimônia de reabertura da catedral Notre-Dame em dezembro, que ocorreu um dia depois do evento no Uruguai, embora sua presença estivesse inicialmente prevista. A imprensa francesa comentou que Macron teria decidido retirar o convite.
Para ser ratificado, o acordo com o Mercosul precisa ser aprovado pelo Conselho Europeu, que reúne os chefes de Estado e de governo do bloco. Para bloquear o texto, é necessário somar quatro países que representem 35% da população da União Europeia. A Polônia se juntou à França e a Itália também declarou, antes da crise desencadeada pela nova política tarifária dos EUA, sua oposição ao tratado. Uma outra etapa é receber o sinal verde do Parlamento Europeu.
“O governo francês se opõe ao acordo em razão do clima político na França. Macron e membros do governo se mostraram no passado favoráveis ao livre comércio. O presidente não é categoricamente contra. É uma tentativa de alinhamento em relação à opinião pública”, afirma o economista Rémi Bourgeot, pesquisador ligado ao Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (IRIS), com sede em Paris.
“A guerra comercial vai no sentido de colocar o acordo na rampa de lançamento. A situação internacional pode ser um pretexto para acelerar sua ratificação e ele será adotado de uma maneira ou de outra”, afirma Bourgeot, ressaltando, no entanto, que o governo francês está em uma situação precária, sem maioria no parlamento, e que aceitar algo em que até então havia uma posição de hostilidade o deixaria ainda mais fragilizado.
Segundo Bourgeot, Macron tentaria modificar um pouco o acordo com o Mercosul para poder dizer que obteve tal concessão, mesmo que mínima.
No início de abril, o ministro francês das Finanças, Éric Lombard, reconheceu que em razão da ameaça americana de tarifaços e de seu impacto sobre o comércio internacional é preciso “apressar” as discussões sobre o acordo com o Mercosul, em um raro aceno à eventualidade de uma mudança na posição francesa.
Lombard fez essa declaração em um encontro em Paris com o ministro brasileiro da Fazenda, Fernando Haddad. Ao mesmo tempo, o francês reiterou a oposição francesa à ratificação do acordo, afirmando que faltam ajustes para concluí-lo. Eles envolvem, de acordo com o francês, “a questão da pegada ecológica, a área industrial e também assuntos relativos à agricultura.”
“Compartilhamos com o Brasil o desejo de desenvolver o multilateralismo e o projeto de acordo com o Mercosul se insere nesse contexto”, afirmou na ocasião o ministro francês.
Lula faz visita de Estado à França em momento de tensão com os EUA.
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O presidente do Banco Central francês, François Villeroy de Gaulhau, informou recentemente Macron que o acordo com o Mercosul poderia “amortecer o choque” dos impactos tarifários vinculados à guerra comercial de Trump.
O professor de economia da universidade Sorbonne Paris Nord e pesquisador do Iris, Philippe Barbet, diz à BBC News Brasil que o acordo com o Mercosul é equilibrado e favorável ao setor industrial europeu e mais ainda ao de serviços.
No caso da agricultura, ele representa um problema para os produtores de cereais e de carne, embora a carne do Mercosul represente apenas 1,3% do consumo na França, diz ele, e uma vantagem para outros setores agrícolas, como o de vinhos e queijos.
“Os acordos comerciais não estão mais na moda na França”, diz Barbet, ressaltando que é complicado para o governo francês recuar de sua posição. “A situação política na França não permite”, diz.
Segundo o economista, não haveria mudança de opinião do governo francês em razão das tarifas anunciadas por Trump, que tornam, na avaliação de Barbet, o acordo da UE com o Mercosul ainda mais importante.
“A agricultura francesa atravessa uma crise profunda e o lobby agrícola francês é muito potente. Há também uma ligação muito forte dos franceses com esse setor.”
Ele destaca que se a França conseguir obter alguma mudança, ainda que simbólica, do texto, como por exemplo um maior controle dos produtos do Mercosul nas fronteiras do bloco, isso poderia facilitar uma mudança de posição do governo.
“O acordo será finalizado porque a França não vai conseguir bloqueá-lo. O país está relativamente isolado”, afirma Barbet. Ele evoca ainda a possibilidade de que nos bastidores a França poderia não se empenhar para obter o apoio de outros países para conseguir o bloqueio do texto, sem precisar, oficialmente, mudar de posição.
Lula já está em Paris para viagem de uma semana à França
Do lado francês, pouco antes da chegada do presidente Lula a Paris, o discurso continua o mesmo.
“A França não mudou sua oposição ao acordo como Mercosul, apesar da alta das tarifas alfandegárias americanas. Pensamos que esse acordo não é bom para a economia francesa e, em particular, para os consumidores e produtores agrícolas europeus”, disse à BBC News Brasil uma fonte diplomática da França.
“Não somos contrários por princípio aos acordos comerciais. Analisamos caso a caso o resultado das negociações em função de nossos interesses. É por essa razão que nos opomos ao acordo com o Mercosul, que no estado atual não é satisfatório”, acrescenta a fonte diplomática francesa.
“Devemos ter uma agenda comercial europeia que seja coerente com nossa agenda regulamentatória e climática”, ressalta a fonte.
No ano passado, a França foi o 29° principal destino das exportações brasileiras, enquanto a França foi a 8ª maior fornecedora do Brasil.
A balança comercial entre os dois países, de cerca de US$ 9 bilhões no ano passado, é favorável para a França. Ela foi impulsionada pelo aumento de 11% nas importações do Brasil, que atingiram US$ 6,1 bilhões, segundo dados do governo brasileiro. Já as exportações do país para a França ficaram estáveis, totalizando US$ 2,9 bilhões.
O presidente do Conselho Europeu, António Costa, declarou ter a expectativa de que o acordo comercial entre a UE e o Mercosul seja definitivamente concluído em dezembro. Resta saber como a posição francesa poderá evoluir nos vários encontros que Macron terá com Lula nos próximos dias na França.
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