O que antes era um modesto laboratório universitário para análise de células com fins terapêuticos deu lugar a oito salas totalmente equipadas e capazes de replicar dezenas de milhares de células em um intervalo curto de tempo.
É no Nutera (Núcleo de Terapia Avançada), localizado dentro da FMRP (Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto), no interior paulista, que essa produção está a todo vapor.
O centro é hoje o maior da América Latina para o desenvolvimento de terapias inovadoras contra o câncer, como a CAR-T, um tipo de tratamento em que as células do paciente são modificadas para reconhecer e atacar tumores e depois reintroduzidas no organismo.
O que antes levava de 20 a 30 dias para produzir agora está sendo fabricado a toque de caixa no núcleo.
“Saímos de uma escala artesanal para tratar cerca de 300 casos por ano”, diz o médico Diego Clé, professor da FMRP e pesquisador responsável pelo estudo clínico Carthedrall com células CAR-T produzidas no centro.
O estudo recebeu aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para avaliar a terapia em 81 pacientes com leucemia linfoide aguda ou linfoma não Hodgkin.
A jornada até esse ponto foi relativamente rápida, conta o médico.
Em 2014, o laboratório de Ribeirão começou a estudar as células CAR-T. Em 2019, anunciou o primeiro paciente tratado com a terapia.
Quatro anos depois, iniciou o ensaio clínico combinado de fase 1/2 —para avaliar segurança, dosagem e resposta imunológica—, expandindo o número de centros de pesquisa de 1 para 5 no estado —três na capital e um em Campinas, além do centro em Ribeirão Preto.
Embora o foco principal do Nutera hoje sejam as células CAR-T, existem outras linhas de pesquisa em andamento, como células CAR-NK, produzidas a partir de linfócitos natural killers (NK), que são menos específicas e podem ser usadas por diferentes pacientes e no tratamento de doenças autoimunes.
“Foi dentro do CTC que surgiu o uso de células-tronco hematopoéticas para o tratamento, por exemplo, de diabetes. Temos avançado no transplante alogênico de células para anemia falciforme [condição em que as hemácias são defeituosas], e é hoje o único centro onde esse tratamento é aplicado,” afirma Rodrigo Calado, pró-reitor de pós-graduação da USP e diretor da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto.
Esses são alguns dos resultados obtidos até agora com mais de 25 anos de investimento em pesquisa com células-tronco e terapia celular no centro.
Tudo começou com pesquisas desenvolvidas para algumas técnicas já conhecidas de terapia celular e células-tronco, principalmente com três tipos: células-tronco estromais mesenquimais (células-tronco do adulto capazes de se renovar e se diferenciar), células-tronco hematopoiéticas (células que se diferenciam em sanguíneas ou do sistema imune) e células pluripotentes induzidas (também conhecidas como IPS).
“Durante muito tempo, os ensaios eram restritos a estudos pré-clínicos, com células-tronco em modelos animais, mas, conforme esses estudos foram avançando, surgiram cada vez mais ensaios com humanos para diversas doenças”, afirma Lygia da Veiga Pereira, professora do ICB-USP (Instituto de Ciências Biomédicas da USP) e uma das mais antigas pesquisadoras do CTC.
“É transformador no sentido de você poder pegar uma IPS e transformá-la em um neurônio dopaminérgico, por exemplo, e utilizar no tratamento de Parkinson, ou em uma célula hepática para tratamento de doenças do fígado. É realmente surpreendente o potencial.”
As primeiras pesquisas com células-tronco e terapia celular para reversão de condições de saúde surgiram na década de 1960. Nos anos seguintes, embora tenham tido um grande avanço no sentido de melhorar a condição em pacientes, foram levantadas questões éticas, uma vez que eram originárias principalmente de tecido embrionário.
Recentemente, dois estudos clínicos independentes, publicados na revista Nature, demonstraram a segurança e eficácia do uso de células-tronco para recriar neurônios dopaminérgicos em pacientes com Parkinson, um utilizando células embrionárias e o outro, células pluripotentes induzidas.
“Por outro lado, existe uma grande complexidade que é conseguir que elas de fato se diferenciem no tipo celular de interesse”, diz Lygia. Por essa razão, o tratamento com as células hematopoiéticas, de diferenciação em células sanguíneas, tem sido mais bem-sucedido.
No centro brasileiro, pesquisadores do Instituto Butantan, do Hemocentro RP e da FMUSP se debruçam sobre essa e outras possibilidades de terapias com células.
“O Nutera é uma cooperação entre a USP, o Butantan e a FMRP, com inauguração de uma nova área da fábrica que é o Cepix [Centros de Pesquisa e Inovação Especiais], onde serão desenvolvidas também pesquisas em terapia celular, com o apoio da Fapesp, da Finep e da Fundação Butantan”, afirma Esper Kallás, diretor do Instituto Butantan.
“Existem diversos estudos, não só nossos, mas internacionais para levar essa mesma tecnologia para outros tipos de câncer e doenças”, lembra Clé.
Ter uma unidade com esse porte —a fábrica em si tem mais de mil metros quadrados— no país é estratégico. Ela pode auxiliar não só no atendimento ao SUS, mas também exportar o produto para outros países da América do Sul.
“É a única estrutura industrial desse porte na América Latina e a segunda em todo o hemisfério sul”, afirma Dimas Covas, ex-diretor do Butantan e professor titular da divisão de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular na FMRP.
Dimas estava à frente do instituto quando foi criado o Nutera, em 2022. “Tenho imenso orgulho de ter iniciado esse projeto [do CAR-T], que hoje representa a iniciativa mais avançada no país nessa área.”
De fato, tal ambição não seria possível se não houvesse investimento em ciência básica nos últimos anos. Além da verba destinada para o ensaio Carthedrall, disponibilizada pelo Ministério da Saúde, Butantan e USP, o CTC possui projetos financiados pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e pela Finep.
“É um caminho que começa lá atrás, com o laboratório da universidade, para chegar nesse momento de ter um produto, uma terapia celular ofertada ao paciente”, diz Calado.
“Esse é um exemplo prático do que a ciência pode trazer na vida de cada brasileiro”, acrescenta Clé. “Dez anos depois, conseguimos encontrar um ca minho para fazer uma alternativa muito mais barata e tão eficaz quanto, mostrando o que é atingido quando temos investimento em ciência.”