Beneficiários de planos de saúde têm 34% mais chances de fazer uma cirurgia de apêndice, o procedimento de urgência mais comum no país, em comparação aos pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde).
A taxa de apendicectomia entre os usuários de planos —que cobrem um quarto da população— é de 100 cirurgias por 100 mil. Entre os que dependem exclusivamente do SUS, a taxa é de 74 cirurgias por 100 mil.
Nas retiradas de vesícula (colecistectomia), o setor privado tem uma taxa 58,7% superior à do SUS: 312 contra 197 cirurgias por 100 mil habitantes.
A disparidade na oferta das cirurgias de hérnias da parede abdominal é ainda maior: 401 procedimentos por 100 mil habitantes na rede privada —número 86,6% superior ao do SUS (215 por 100 mil).
Os dados sobre esses três procedimentos integram a pesquisa Demografia Médica no Brasil 2025, feita pela Faculdade de Medicina da USP em parceria com Associação Médica Brasileira e o Ministério da Saúde. O estudo sobre cirurgias teve apoio do CBC (Colégio Brasileiro de Cirurgiões).
No lançamento da pesquisa, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, disse que os resultados reforçam a necessidade de ampliar o acesso às cirurgias e serão fundamentais para orientar novas estratégias, como o aproveitamento da capacidade de hospitais e ambulatórios privados prevista no programa Agora Tem Especialistas, lançado no fim de maio.
“Uma das coisas que está clara para nós é que, em razão da forma como se distribui a estrutura de atendimento e a concentração de profissionais, não é possível avançar na oferta do atendimento especializado sem buscar parcerias com o setor privado”, disse.
De acordo com o estudo, 20% dos cirurgiões trabalham exclusivamente no setor privado, 10% apenas no SUS e 70% atuam nos dois setores. Três em cada quatro relatam que tiveram que cancelar cirurgias no Brasil por problemas na estrutura hospitalar ou falta de pessoal, como anestesistas, entre outros.
Para Mario Scheffer, professor do departamento de medicina preventiva da USP e coordenador do estudo, para diminuir as filas de cirurgia no SUS, a curto prazo, será necessário deslocar para a rede pública parte da capacidade cirúrgica hoje concentrada em hospitais privados.
“[O ministério] vai ter que comprar do privado mesmo, mas a questão é se vai comprar a melhor capacidade do privado para o público”, afirma.
Para ele, chama atenção o fato de que mesmo se tratando de cirurgias de emergência, como a apendicectomia, pacientes com plano realizam proporcionalmente mais cirurgias do que os pacientes do SUS. “Isso é muito grave e precisa ser corrigido”, diz.
O cirurgião Gerson Alves Pereira, que participou do estudo pelo CBC, destaca as disparidades regionais na distribuição das cirurgias. “A Bahia tem 45 [cirurgias por 100 mil], Rondônia, 52. Não há menos apendicite nesses locais. O que não tem é diagnóstico, acesso.”
Segundo ele, se os sistemas de informação em saúde fossem mais acurados, essas iniquidades de acesso apareceriam também nas taxas de mortalidade. “Veríamos que em pleno século 21 ainda temos muita morte por apendicite no Brasil todo.”
Há grandes gargalos também nas técnicas cirúrgicas. De acordo com o estudo, entre os procedimentos pesquisados, no SUS a maior parte ainda é feita por “via aberta”, o que pode resultar em maiores taxas de complicação, tempo de internação prolongado, recuperação mais lenta e demora no retorno ao trabalho.
No caso da apendicectomia, só 11,3% dos pacientes do SUS fazem o procedimento por videolaparoscopia, cirurgia minimamente invasiva. Entre os usuários de planos de saúde a probabilidade é de 76%.
Na colecistectomia e na correção de hérnia, a diferença também é grande: 54,1% contra 94%, e 0,6% contra 22,1%, respectivamente.
Para Pereira, entre os fatores que explicam a pouca oferta das videolaparoscopias no SUS estão os custos iniciais com a aquisição de equipamentos e o treinamento da equipe médica.
“Mas o custo final depois se paga. [A técnica] reduz muito os custos hospitalares, de medicações, de complicações, que são muito maiores [nas cirurgias abertas]. Há cirurgias por vídeo que são feitas de forma ambulatorial. A pessoa interna de manhã, faz a cirurgia e vai embora no final da tarde.”
Raul Cutait, cirurgião digestivo do Hospital Sírio-Libanês, lembra também dos custos indiretos, relacionados com a volta do paciente às suas atividades rotineiras.
“Uma cirurgia aberta às vezes requer uma incisão grande, e a pessoa fica dois meses sem poder fazer esforço físico, 15 dias sem poder trabalhar. Na laparoscopia, em uma semana ela está inteira.”
Segundo Pereira, há outros fatores que contribuem para as disparidades no acesso a cirurgias minimamente invasivas, como a falta de aprendizado da técnica durante as residências médicas.
“Quem tem feito essa capacitação dos cirurgiões é mais a indústria de equipamentos do que as universidades públicas, o que, no mínimo, é um enorme conflito de interesses.”
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde