A faxineira Silvana de Fátima Vieira, 47, procurou um posto de saúde em Florianópolis com queixas de ansiedade e de insônia, que foram agravadas após a morte do marido, no ano passado. Entre as recomendações médicas que recebeu, uma foi inusitada: voltar a estudar.
Assim como quase 47% da população adulta brasileira acima de 25 anos, Silvana não possui educação básica. Parou os estudos no segundo ano do ensino fundamental. “É muito ruim. Não entendo direito os papéis, os documentos, as bulas, as receitas dos remédios”, diz.
Em uma iniciativa pioneira, médicas e médicos de família e comunidade da capital catarinense estão prescrevendo a volta aos estudos como parte do tratamento a pacientes com objetivo de melhoria da saúde e da qualidade de vida.
O projeto é desenvolvido dentro da Estratégia Saúde da Família, modelo assistencial da atenção básica do SUS que se fundamenta no trabalho de equipes multiprofissionais em um território, com ações de saúde a partir do conhecimento da realidade local e das necessidades daquela população.
Em Florianópolis, a iniciativa teve início em 2021 por meio de uma parceria entre as secretarias municipais da Saúde e da Educação, dentro do programa EJA (Educação de Jovens e Adultos). Neste mês, a iniciativa foi estendida para todo o município.
“A gente encaminha para o EJA como se encaminha para um cardiologista, um psiquiatra”, diz Mayara Floss, médica de família e comunidade do centro de saúde Itacorubi e uma das idealizadoras do projeto e que o apresentou em congresso da especialidade que ocorreu em Manaus (AM), na semana passada.
Ela conta que a ideia surgiu em 2021 ao observar que muitos dos seus pacientes eram analfabetos ou não tinham o ensino básico. Hoje, a unidade de saúde em que trabalha passou a sediar um polo do EJA.
Na mesa da médica, os prontuários estão ao lado das fichas de matrícula. “Eu já matriculo e, depois da consulta, a pessoa vai para a sala de aula. Às vezes, a gente tem dúvida se é educador ou se é médico.”
Eu já matriculo e, depois da consulta, a pessoa vai para a sala de aula. Às vezes, a gente tem dúvida se é educador ou se é médico
Segundo Floss, ao voltar a estudar e a ter novas interações sociais, muitos pacientes relatam melhoria de sintomas de ansiedade e de depressão. Também aprendem a ler receitas de remédios que antes, devido à falta de estudo, recebiam com instruções desenhadas.
“Se tem um solzinho, o remédio tem que ser tomado pela manhã; se tem uma panela, é na hora do almoço”, explica a médica. “Isso é muito paternalista. Minha intenção sempre foi que as pessoas tenham conhecimento para compreender”, diz.
Mas nem sempre é tarefa fácil convencer os pacientes. “Tenho uma paciente que demorou um ano e meio para voltar a estudar. Não se sentia capaz. Geralmente, são mulheres idosas, que não tiveram oportunidade e que têm medo de não conseguir.”
A médica conta que, além dos retornos positivos dos pacientes, tem recebido agradecimentos dos familiares. “Uma neta me disse: ‘ainda bem que a minha avó voltou a estudar. Pelo menos agora eu tenho assunto para conversar com ela’. Acaba sendo um lugar de cura, uma cura social.”
Estudos mostram que o nível educacional desempenha um papel importante na saúde, com impacto na expectativa de vida, nas taxas de incidências de doenças (morbidade) e comportamentos. Também molda oportunidades, emprego e renda.
Para Floss, o acesso à educação é um dos determinantes em saúde (condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem e envelhecem) mais facilmente modificável. “Eu não consigo colocar um telhado melhor na casa do paciente, mas a educação, sim. Os pacientes que encaminho, seguem [a prescrição].”
Daniel Berger, professor articulador do EJA, afirma que os alunos encaminhados por médicos são mais compromissados no retorno ao estudo. “Eles têm essa percepção de que estão cuidando da saúde também.”
Berger lembra de um paciente que sofria de alcoolismo e que tinha parado de estudar no oitavo ano do ensino fundamental. “Ele chegou para mim e disse: ‘Voltei a estudar porque minha médica disse que vai ser bom para mim.’ E ele teve um empenho surpreendente, terminou o ensino médio, parou de beber.”
As motivações para voltar a estudar são as mais variadas, segundo o professor. Uma idosa analfabeta de 76 anos parou de tomar ansiolíticos após se tornar aluna do EJA. “Ela é evangélica e queria aprender a ler a Bíblia.”
Outra idosa de 83 anos relatou ao professor que após voltar a estudar se sente menos sozinha e se reconectou com a família. “Antes, ela quase não conversava, não tinha assunto. Agora, disse que os filhos e netos perguntam sobre a aula, sobre o que ela está aprendendo.”
O professor Berger conta que trabalha com a pesquisa como princípio educativo. “Não tem horário da aula de matemática, de geografia. A gente tem problemáticas e pesquisa. Agora, por exemplo, eles estão pesquisando sobre as plantas medicinais que tem na horta [do centro de saúde].”
O conceito de saúde social foi um dos destaques de um dos maiores festivais de inovação e tecnologia, o SXSW 2025, realizado em março em Austin (EUA) e tem crescido no mundo. Uma das palestrantes, Kasley Killam, autora do livro “The Art and Science of Connection” [A Arte e a Ciência da Conexão], por exemplo, propôs que os médicos prescrevam interações sociais, como grupos de conversa e atividades comunitárias, como parte do tratamento da solidão.
Nesse contexto, a médica Floss tem ainda um outro sonho: transformar o posto de saúde em um centro cultural. “Levar artistas para dentro do posto. Muitos dos pacientes nunca foram a um cinema, a uma peça de teatro. Ao se apropriarem dos direitos à saúde e à educação, começam a acessar outros direitos.”
De acordo com o médico Fabiano Guimarães, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, há outras iniciativas desenvolvidas por médicos de família em curso no Brasil e que ocorrem de acordo com as necessidades das comunidades.
Em Belo Horizonte (MG), por exemplo, há um projeto de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica idealizado também por uma médica de família. “Ela passou a reunir mulheres no posto de saúde para que pudessem falar e se apoiarem. O principal problema para se livrarem do ciclo de agressões era a falta de recurso financeiro. Fundaram uma associação de artesanato, passaram a ter renda e mudaram o destino.”
No Rio de Janeiro, uma equipe de saúde da família que atua em uma favela desenvolveu um projeto com mães de crianças autistas que ficavam muito agitadas durante os tiroteios na área. “A médica distribuiu fones de ouvido e treinou as mães sobre o que fazer para acalmar as crianças naquele momento.”
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde