Dez anos após o zika vírus ter sido identificado pela primeira vez no Brasil, em 28 de abril de 2015, e, nos meses seguintes, levado ao nascimento de milhares de bebês com microcefalia, o país ainda não oferece um plano de cuidado e de assistência a essas crianças, segundo grupos de mães, médicos e pesquisadores sobre o tema.
Sem reabilitação adequada para manejar o conjunto de sequelas que englobam a Síndrome Congênita do Zika (SCZ), que vão muito além do tamanho da cabeça e envolvem alterações neuropsicomotoras, osteomusculares, visuais e auditivas, essas crianças internam sete vezes mais do que outras da mesma idade sem a síndrome e têm maior risco de morte.
No pico da epidemia de zika, entre 2015 e 2016, nasceram 1.692 bebês com a SCZ confirmada, segundo o Ministério da Saúde. Nos anos seguintes, os números caíram, mas nunca zeraram. Em 2023, foram oito casos e, em 2024, dois. No total, foram notificados cerca de 23 mil registros suspeitos da síndrome, dos quais quase 2.000 confirmados, segundo o ministério.
Um estudo da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Bahia, porém, computou e acompanhou 3.308 crianças com a síndrome até os 3 anos de idade. Entre elas, o risco de morte foi 22 vezes maior em relação a outras sem o problema.
O desenvolvimento dessa geração sequelada pelo zika vírus tem sido objeto de vários pesquisas na última década. Uma das mais recentes, publicada no International Journal of Infectious Disease, investigou 2.000 crianças com SCZ em comparação a um grupo controle de 2,6 milhões sem a síndrome durante quatro anos.
Descobriram que, além de doenças comuns da primeira infância, como as respiratórias e infecciosas, as crianças com a SCZ também internam muito devido às más formações congênitas e aos danos neurológicos provocados pela infecção do zika vírus.
“Elas têm pneumonias aspirativas, que acometem crianças que não conseguem deglutir bem. Por problemas do sistema nervoso, ficam microaspirando a saliva e geram uma pneumonia com padrão diferente, que costuma ter um curso mais grave do que as pneumonias convencionais”, explica o médico João Guilherme Tedde, líder do estudo.
Além disso, internam muito por crises convulsivas seguidas e ficam vários dias em UTIs (Unidades de Terapia Intensiva). “Por estar na UTI, elas têm mais risco de desenvolver pneumonia adquirida no hospital. É uma bola de neve.”
Em média, o tempo de hospitalização observado no estudo foi de 20 dias, contra seis dias do grupo controle. Enquanto as crianças sem a síndrome diminuíam o número de internações e a duração de internação com o passar dos anos, as crianças com a SCZ mantiveram os níveis altos.
É o caso de Maria Eduarda, 9, de Olinda (PE), que nasceu com a síndrome da Zika em novembro de 2015. Segundo a mãe, a faxineira Mirian Pereira, 50, que adotou a menina logo após o nascimento, todos os anos a filha precisa ser internada, no mínimo, duas vezes. Em geral, por pneumomia.
Duda não enxerga, não escuta, tem hidrocefalia e, devido à dificuldade de ingerir líquidos, já precisou usar sonda gástrica. “Quase perdemos a Dudinha várias vezes. Mas graças a Deus, ela resistiu.” Neste ano, a menina passou a receber atendimento de fisioterapia em casa.
A família recebe um salário mínimo por mês de benefício federal destinado às crianças com a SCZ, mas, segundo a mãe, a quantia é insuficiente. Uma mulher que vive nos Estados Unidos ajuda a família com a compra de fralda e alimentos e, recentemente, doou também uma cadeira de rodas e uma cama hospitalar. “É um anjo na vida de Duda.”
No estudo da Fiocruz, os pesquisadores citam um outro trabalho que investigou os custos associados aos cuidados com as crianças com a SZC. Cerca de 30% das famílias reportam gastos que ultrapassam 40% da renda anual.
“Essas crianças precisam de um acompanhamento multiprofissional, com pediatra, neurologista, fisioterapeuta, enfermeira etc. Muitas vezes, no Nordeste, quando existem, esses profissionais estão em locais mais afastados, então tem o custo de deslocamento, às vezes são várias consultas em locais diferentes”, diz Tedde.
Segundo ele, para elaborar uma política pública de forma inteligente, os governos precisam saber quais são os pontos que carecem de mais atenção para realizar investimentos direcionados para eles. “Não adianta criar um centro que tem pouco neurologista e muito cirurgião de cabeça, por exemplo.”
Para o pesquisador, com estratégias preventivas, muitas internações seriam evitadas. “Como médico, vi vários casos em que a internação em si não era o começo de tudo, era o fim. Às vezes, a criança já vinha desassistida. Elas não têm cura, mas a gente precisa tentar trazer conforto para a rotina delas.”
Germana Soares, mãe de Guilherme, 9, que nasceu com a síndrome, é uma das dirigentes da União de Mães de Anjos (UMA), que apoia famílias de crianças com a SZC. Ela diz que hoje a principal dificuldade que ela e outras mães enfrentam é a falta de assistência adequada para os filhos.
“No SUS [Sistema Único de Saúde], é difícil a gente conseguir consulta com profissional especializado, é difícil conseguir exame de alta complexidade, é difícil conseguir medicamentos e é quase impossível conseguir terapia ocupacional. O menino morre, e o exame, a cirurgia, não saem.”
Guilherme tem plano de saúde, mas muitas terapias que precisa são oferecidas apenas em clínicas privadas não conveniadas à operadora. Custam entre R$ 300 e R$ 800 cada sessão de 50 minutos.
Germana conta que só tem conseguido manter a rotina de cuidados do filho porque obteve decisão judicial favorável em ação que moveu contra o plano de saúde. “Mas quando o plano deixa de pagar a clínica, ela suspende o atendimento, e meu filho regride tudo o que avançou. E eu regrido também”, diz ela, que tem depressão grave e fibromialgia.
De acordo com a médica Adriana Melo, a primeira a associar o vírus da zika aos casos de microcefalia, não há plano de cuidado para essas crianças. “Já soube de centro de reabilitação do governo dando alta à criança que não tem potencial de andar. Como se fisioterapia não levasse à melhoria de postura, não prevenisse pneumonias por aspiração.”
Germana Soares diz que, há uma década, muitas mães receberam o diagnóstico de que seus filhos não sobreviveriam ao primeiro ano de vida. “Estamos chegando aos dez anos com muitas perdas. Éramos 15 mil [o governo não confirma o número], agora somos cerca de 1.500. Estamos sobrevivendo com muita dor, pelas perdas, e pelo desamparo de um estado brasileiro que fecha os olhos para a gente.”
Em nota, o Ministério da Saúde diz que acompanha de forma permanente os avanços científicos sobre a SCZ e implementa ações integradas de prevenção, vigilância, assistência e pesquisa, com foco na melhoria do cuidado às crianças afetadas e suas famílias.
Entre as ações adotadas está a ampliação de repasses federais para cirurgias ortopédicas, como as de quadril, uma das principais complicações da síndrome. O pagamento desse procedimento pode chegar até quatro vezes o valor da Tabela SUS, diz o ministério.
Também cita a capacitação contínua de profissionais de saúde, nos estados com maior incidência de zika, a transferência de veículos adaptados para apoiar o deslocamento de crianças com deficiência e a expansão da rede de reabilitação, com mais de 40% de aumento entre 2023 e 2025.
O ministério diz que, desde 2023, mantém diálogo ativo com as mães de crianças com SCZ, realizando reuniões regulares e adotando medidas a partir dessas demandas. “Em Pernambuco, por exemplo, mais de 170 crianças foram avaliadas e 79 já foram indicadas para cirurgia.”